sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Carnaval abusivo!

Festa popular? Evento democrático? Esqueça tudo isso se você imagina que o carnaval de Salvador seja coerente com todas as suas letras: preços abusivos fazem os foliões gastarem até o que não podem, e em busca do que? Diversão? Não dá para se divertir sem gastar tanto?

As cordas dos blocos são uma síntese do apartheid social não só de Salvador, mas do mundo como um todo: 'fardados e felizes' estão os foliões que, quanto maior o preço do abadá, mais clara será a cor predominante na pele de sua maioria. Segurando as cordas, estão na sua maioria trabalhadores ofuscados pela 'luz das estrelas de cima do trio', na sua maioria pessoas que precisam muito daquele dinheiro e se submetem a péssimas condições durante horas de percurso. Tão povo quanto os cordeiros é a pipoca, embora me pareça incoerente o fato de serem os cordeiros os responsáveis pela segurança de seus patrões que pouco te respeitam, e não pela dos seus irmãos de origem.

No dia que a massa abrir mais os olhos para isso, haverá revolta, e fruto dessa transgressão poderá nascer violência, mas com um objetivo nobre: democratizar o elitista carnaval de Salvador. Eu não quero pagar mais de 200 reais para ter conforto e segurança. Eu não quero ser obrigado a ver os artistas de tão longe, e ninguém quer, mas o 'querer' só vira direito com as 'cifras', e quem não tem disposição para remexer tanto o bolso fica sem ver o evento que chama a atenção de todos na cidade.

Será que se paga pela qualidade? Eu acho que não: Salvador não está restrita ao Axé (Ivete, Asa, Chiclete...), pagode (Psirico, Fantasmão, BlackStyle...), tecno (Fat Boy Slim, Tiesto...), Forró (Cavaleiros, Aviões...) e tribal (Motumbá, Vixe Mainha, Timbalada...): somos também a terra de Pitty, Camisa de Vênus e Márcio Melo (Rock), Adão Negro, Diamba e Edson Gomes (Reggae), MPB (Caetano, Gil, Betânia, Gal Costa) e até pop (Moinho), muitos desses shows nem se paga para entrar, há lugares longe da grande mídia que se tocam bandas de altíssima qualidade, embora estes mesmos não façam questão de serem comerciais: pelo contrário, o intimismo de alguns artistas, longe de algazarra e multidão, proporcionam rara beleza, e só quem merece desfrutá-la é quem corre atrás dessas músicas, e não as músicas correm atrás de você, seja no rádio, na tv ou na boca do povo.

Não sou contra instrumentos estrangeiros no carnaval: uma guitarra pode cair muito bem com uma batida tropical (a exemplo do movimento 'tropicalismo', com Caetano e Gil), num misto criativo que poderá gerar belas canções, mas o lance é que o carnaval de Salvador está se prostituindo, as músicas estão empobrecendo e o regionalismo entra numa crise de identidade, entre o que é baiano e o que se constrói apenas para se ganhar mais dinheiro.

Claro que nem tudo de nossa terra é ponto de referência para nós: o estilo indie (que até virou rótulo para pessoas, com roupas quadriculadas, cabelos pretos brilhantes e músicas sem compromisso com a grande indústria) tem suas origens na Europa (a exemplo dos Strokes), mas no Brasil tem surgido excelentes bandas desse gênero, muitas delas respeitadas lá fora.

Então, a questão não é contrair todos os elementos da natureza da nossa terra Brasil, e sim respeitar a nossa essência pessoal, sem deixar que 'nosso meio' nos faça ser quem não somos, e questionar sempre o que todos têm tanta certeza, afinal, o que é Brasil? Somos só carnaval? Somos apenas o que construíram até agora, ou podemos nos reconstruir, progredir, inventar novos estilos e adquirir outros, em que sejamos tão bons ou melhores do que os próprios inventores (a exemplo do futebol, que fora criado na Inglaterra e 'refinado' por nós sendo a nossa técnica incomparável). Vamos reconstruir o carnaval de Salvador? Vamos reconstruir o Brasil? Reflitam sobre tudo isso e ouçam abaixo essa maravilhosa música de Gilberto Gil (A novidade), e mais abaixo uma imagem que fiz baseado nessa música há 2 anos atrás:



A novidade veio dar à praia
Na qualidade rara de sereia
Metade, o busto de uma deusa maia
Metade, um grande rabo de baleia

A novidade era o máximo
Do paradoxo estendido na areia
Alguns a desejar seus beijos de deusa
Outros a desejar seu rabo pra ceia

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total

E a novidade que seria um sonho
O milagre risonho da sereia
Virava um pesadelo tão medonho
Ali naquela praia, ali na areia

A novidade era a guerra
Entre o feliz poeta e o esfomeado
Estraçalhando uma sereia bonita
Despedaçando o sonho pra cada lado

Ó, mundo tão desigual
Tudo é tão desigual
Ó, de um lado este carnaval
Do outro a fome total


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