sábado, 29 de junho de 2013

A Copa das “Manifestações” e do “Pudor”

Manifestantes no Campo Grande, em Salvador l Foto: Instagram / felipepmagalhaes
Longe da galhofa que envolveu a folclórica seleção do Taiti, as vaias à Seleção Espanhola em todos os jogos e o carisma de Balotelli, a “jiripoca piou” no entorno dos estádios antes e durante as partidas da Copa das Confederações. A estreia, em Brasília, deu o tom do que seria a relação entre manifestantes e polícia. Se a Fifa imaginou que poderia emplacar as “caxirolas”, a tendência das ruas foi balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Dentro das arenas, porém, pouco se percebia, graças à péssima qualidade de captação do 3G e pelo perímetro extenso estabelecido, que fazia o barulho das explosões não se propagar até as arenas. Fui ao jogo entre Uruguai e Nigéria, na minha cidade, Salvador, e só percebi a gravidade do que aconteceu quando cheguei em casa, já que a polícia não havia sido truculenta no protesto de três dias antes. 

Vivi momentos mágicos, que sempre sonhei: interagir com pessoas de outros países, curtir uma infraestrutura que, por alguns momentos, me dava a impressão de estar na Disney, ver de perto jogadores que eu estou acostumado a acompanhar nas principais ligas da Europa... Não há pecado em sentir prazer por viver essa atmosfera. Essa não foi só a “Copa das Manifestações”, mas também a “Copa do Pudor”: mostrar interesse por futebol na segunda metade de junho poderia despertar críticas nas redes sociais, inclusive de quem semanas antes do início do torneio cogitava comprar um ingresso. 
Eu e os uruguaios l Foto: Instagram / lucasfranco1

O clima de revolta da população contra a situação do país é digna, inclusive sempre tive ressalvas à realização da Copa do Mundo no Brasil, mas eu tinha que fazer parte desses momentos que apaixonados por futebol por todo o planeta sonham em viver pelo menos uma vez na vida. O futebol não é o causador das mazelas do país e Neymar não tem culpa por ser tão valorizado. Aliás, o Japão, tão reverenciado como referência em educação, também tem ídolos esportivos. O “erro” não está em acompanhar futebol em momentos como esse, e sim em viver em função de qualquer coisa que seja (futebol, festa, trabalho, família...) e se esquecer das demais pelos 365 dias do ano. Assim como o que engorda não são os hábitos alimentares do período entre o natal e o réveillon, e sim a “dieta” entre o réveillon e o natal.

A cobertura jornalística durante o torneio parecia mostrar dois países. Na Globo e Sportv, pouco se via de manifestações. Já a ESPN, que tem comentaristas que sempre se posicionaram contra a realização do torneio no Brasil, como Mauro Cezar Pereira, Juca Kfouri e José Trajano, deu uma aula de bom jornalismo, com flashes dos protestos sem deixar de acompanhar de perto o que acontecia dentro de campo, embora sem os direitos de reproduzir as imagens dos jogos. 

O FUTEBOL NO MEIO DE TUDO ISSO

Escrever sobre a nona edição do torneio que reúne os campeões continentais sem mencionar tais turbulências é como tentar contextualizar a Europa da década de 40 sem escrever uma linha sobre a Segunda Guerra Mundial. Mas também se jogou futebol pelo lado de cá. E como.

Antes das definições do terceiro colocado e campeão, os lados “A” e “B” já estão gravados para a posteridade. Com exceção do país-sede, as equipes que mais despertaram a simpatia do público foram justamente as lanternas dos seus grupos. Tão distantes do ocidente, Japão e Taiti perderam todas as três partidas, mas “folclorizaram” o torneio tão “pasteurizado”. Para mim, “o gol do torneio” foi marcado por Jonathan Tehau, do Taiti, contra a Nigéria. Sua seleção perdia por 3 a 0, mas a vibração pelo tento e comemoração provaram que é possível ser feliz “sem ser o melhor”.




Inevitável não lembrar da música “O Vencedor”, de Los Hermanos: “Eu que já não quero mais ser um vencedor/ Levo a vida devagar pra não faltar amor”. Não faltou amor aos taitianos, que ganharam até uma torcida em Recife, a “Taititibis”, criada pelos torcedores do Íbis, o “pior time do mundo”.

Foto: Divulgação


O Japão, por sua vez, levou o torneio à sério. A derrota por 3 a 0 para o Brasil na estreia não esfriou os ânimos dos bravos samurais, que foram eliminados na segunda rodada após um jogo épico contra a Itália. Terminaram o primeiro tempo vencendo por 2 a 0, e o final do cotejo, 4 a 3 para a Azzurra, teve emoção até o último suspiro. Talvez tenha sido a melhor partida do torneio e os torcedores na Arena Pernambuco apoiaram os orientais.

A frase que resume o sentimento do povo brasileiro, que até então não havia visto legado nas realizações dos torneios da Fifa no país, é: “No meio do caminho tinha uma copa. No meio da copa achamos o caminho”. A pressão popular sobre os políticos gerou inúmeras conquistas, que vão de redução de tarifas de ônibus à rejeição de Proposta de Emenda à Constituição (PEC). Que manifestações desse tipo não ocorram apenas quando o “mundo estiver de olho no Brasil”. Na minha opinião, os brasileiros de um modo geral têm a necessidade de serem “percebidos”. Necessidade de aprovação. Não é preciso que os outros saibam que nós existimos. Nós somos muito maiores do que qualquer tipo de julgamento lá fora. E estamos nos reconstruindo. O dia 17 de junho, primeiro dia de manifestações que abrangeram diversas cidades do país, já está nos livros de história, independentemente do que aconteça daqui para frente. Esse foi o principal legado da Copa das Confederações.

terça-feira, 18 de junho de 2013

Inconformados de verdade: uma seleção de heróis

A seleção não representa o governo, a Rede Globo ou a CBF. Ela é composta por pessoas que, apesar de não se pronunciarem sobre os problemas nacionais, não acordaram ontem. Eles nos representam | Ricardo Nogueira/Folhapress
Todas as manifestações em prol de melhorias para o país são admiráveis, independentemente de quaisquer transtornos eventuais, como atos de vandalismo. Sair da inércia sempre será melhor do que calcular com perspicácia eventuais danos de uma operação complexa como um protesto com milhares de pessoas. Mas ao contrário do que alguns militantes defendem, o gigante não acordou, ou ninguém se lembra de Zumbi dos Palmares, Balaiada, Sabinada, Conjuração Baiana, Contestado, Canudos, Cabanagem... O gigante sempre lutou. O povo brasileiro tem uma história de lutas e conseguiu avanços importantes. Quantos jovens não se tornaram os primeiros da família a conseguirem entrar na faculdade? Tataranetos de escravos que ergueram com orgulho o canudo de formando graças a alguns avanços sociais, como os créditos educativos e cota nas universidades públicas, mas sobretudo graças a garra. Nunca faltou força de vontade para os brasileiros.

A consciência política, sim, pode ser o próximo passo para uma nova fase, embora em algumas andanças minhas pelo mundo conheci estrangeiros de “países de primeiro mundo” que não sabiam bulhufas sobre política local. As passeatas injetam doses extras de auto-estima, mas trazem como efeitos colaterais a falta de autocrítica. Por que quem nunca se mobilizou antes para lutar por mudanças hoje se sente no direito de julgar quem ainda não aderiu à causa? Isso me lembra os episódios de repúdio ao torcedor do Bahia, Binha, que nada mais é que um reflexo do que foi a massa tricolor durante toda sua vida, como escrevi em uma postagem há um mês.

Sobrou até para o futebol. Cartazes como “Japão, eu troco meu futebol pela sua educação” e gritos como “Brasil vamo acordar, o professor vale mais que o Neymar” jogam a responsabilidade de um segmento omisso na sociedade em um esporte de essência popular. A classe média tem tido presença maciça no movimento, o que é perceptível nas redes sociais. Ótimo. Mas os 23 jogadores que representam nosso país na Copa das Confederações lutaram mais contra a corrente do que a grande maioria dos manifestantes que descobriram ontem como mostrar indignação, e eu me incluo aí. A Seleção Brasileira não representa o governo, a Rede Globo ou a CBF. Ela é muito mais que isso. Ela é composta por pessoas que, apesar de não se pronunciarem sobre os problemas nacionais, não acordaram ontem. Histórias de meninos pobres que acordavam cedo, desde muito cedo, para ralar nos treinos em busca do sonho de ser jogador e ajudar a família e a comunidade, sem falar na superação de Thiago Silva, que superou uma tuberculose na Rússia, são as provas que eles nos representam. O que há de ruim no futebol não é causado pelos jogadores.

A história tradicional da música brasileira omite o brega. A MPB, gênero mais influente na classe média, que lutou por democracia nos tempos de ditadura, preenche as lacunas dos tempos de chumbo. O livro “Eu Não Sou Cachorro Não”, de Paulo Cesar de Araújo, resgata um pouco da história dos artistas que, ao contrário dos astros da MPB, vieram de baixo e não eram tão instruídos politicamente, mas incomodaram os censores da mesma forma por tratarem de temas como a opressão de uma classe dominante sobre o povo, coisa que não pôde ser sentida na pele por Chico Buarque por exemplo. Tampouco os compositores “politizados” levavam seu som a lugares remotos, como Ravel descreve em uma passagem. “Nós sempre estivemos nos apresentando em localidades onde a maioria dos artistas não queria ir. Nenhum artista da MPB ia se apresentar em Capual, Vilhena, Ji-paraná, Pimenta Bueno, Rolim de Moura, Presidente Médici; é incrível, mas nós vimos nascer esses municípios todos. Inúmeras vezes a gente cantou para aqueles trabalhadores que estavam construindo a Transamazônica. E era um risco muito grande para um artista fazer um show ali. Mas nós fazíamos os nossos shows assim, cantando embaixo de galpões, em fazendas, levando mordidas de mosquito, ficando atolado na estrada, vendo a miséria do povo, aquele povo simples que adorava música”.

E quantos dos manifestantes desprezam símbolos populares como os jogadores de futebol e os cantores de brega? Estes, sem dúvida, nunca dormiram. Com consciência política ou não, fizeram muito mais que a maioria dos que têm feito protesto e somente decidiram agir na semana passada. Pior para mim, que não fui às ruas na segunda-feira. Será que eu ainda não acordei?