quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Obrigado, queridos professores de história

Zumbi dos Palmares - Imagem: Divulgação
Eu não poderia passar o 20 de novembro, dia da consciência negra, sem lembrar os meus professores de história dos tempos de colégio, especialmente Sérgio Guerra (sexta-série), o meu favorito, que despertou minha curiosidade sobre a cultura afro-brasileira e principalmente, sobre o Curuzu, como escrevi em uma postagem no início do ano. 

Ser professor no Brasil não é fácil. Não é de hoje que a educação pública está sucateada. No entanto, sugiro que também não são pequenas as dificuldades de lecionar história em um colégio privado. Narrar a trajetória do ser humano a partir do advento da escrita até os dias atuais é duro quando boa parte da sala de aula cultiva mitos enraizados pela família, que geralmente é de classe média, e pela televisão, tão pouco democrática. A educação de casa custa a envergar para a esquerda, não é a toa que nesse ambiente as cotas são mais questionadas do que o cruel sistema de vestibular. Afinal, quem estuda em colégios como Portinari, Anchieta, Sartre COC e Oficina larga na frente dos cotistas antes de preencher os primeiros gabaritos. Costumo dizer que a educação privada continuará bem até o dia em que os pais dos alunos influenciarem a escolha dos professores de história. Se a educação pública precisa urgentemente de investimentos, a particular “se salva” porque seus professores de esquerda mostram aos alunos que o mundo não começou com a gestação de suas mães. Meus pais, felizmente, facilitaram meu caminho simbólico rumo ao Curuzu, por isso 20 de novembro também é dia de agradecer a eles. 

Obrigado Garrido (terceiro ano do ensino médio), por revelar que Duque de Caxias matou inúmeros paraguaios apenas por maldade. O patriotismo não deve se sobrepor à decência. Chico Pedro, meu único professor negro de história (quinta série), você tem total mérito por me fazer gostar da matéria que leciona com tanto amor. Fábio Machado (sétima séria), até hoje me lembro da trajetória das primeiras civilizações do Oriente Médio e Europa porque suas aulas eram mais dinâmicas do que qualquer documentário ou livro escolar. Freitas (oitava série e primeiro ano do ensino médio), lamento que não estejas em nosso plano material, mas aí do alto saiba o quão fundamental suas aulas foram para que eu fizesse um paralelo entre episódios do passado e o comportamento social moderno. João Gualberto (segundo ano do ensino médio), suas críticas à alguns setores da imprensa me tornaram um leitor mais crítico. Parabéns pelo bom exemplo Zé Carlos (cursinho), pois você tinha motivos para ser amargurado, mas manteve seu sorriso, cordialidade e capacidade de descrição, apesar das torturas que sofreu durante a ditadura militar. Todos esses professores tiveram enorme importância na formação de meu caráter por seus inúmeros ensinamentos. Mas é principalmente Sérgio Guerra que me faz lembrar o 20 de novembro. Ele provou o quão pouco baianos são os estudantes de colégio particular (leia minha postagem “Where is the 'dendê' in my blood?”). Como bom docente, porém, mostrou os caminhos para a “baianização”. Nem tudo estava perdido.

Dia desses me peguei pensando sobre de quem é a responsabilidade sobre o alarmante índice de crimes cometidos pela polícia, sejam mortes em tiroteio nas favelas ou abuso de autoridade. Os números são altos e há uma evidente diferença no tratamento dado a um jovem branco e um jovem negro, o que inclusive já foi admitido (PM de Campinas determina abordagem de suspeitos de ‘cor parda e negra’). Não reconhecer essa triste realidade, em que receptividade, oportunidades e traços étnicos estão inter-relacionados, a meu ver, já torna uma pessoa cúmplice do racismo, seja por maldade, omissão ou ingenuidade. Os mesmos pais que não ensinam a importância de Zumbi dos Palmares para suas crianças só se atentam para a violência urbana quando são assaltados na porta do colégio (Após assalto em escola na Pituba, pais protestam para pedir segurança). Na mesma cidade, todavia, a violência da polícia para “manter a ordem” vitimiza gente que só é lembrada quando para o trânsito para queimar pneu e chamar atenção sobre a violência. Se a indignação pela violência fosse compartilhada por todos, independentemente do bairro, não teríamos no mínimo uma sociedade mais solidária? Ou solidariedade se restringe aos vizinhos? Não foi apenas a maldade, mas também a falta de solidariedade que fez o Brasil amargar mais de 300 anos de escravidão. Falta de solidariedade que permanece nos dias atuais.

O racismo brasileiro é “sutil”. Disfarça-se de “humor politicamente incorreto” e “meritocracia”. Quase justificado pelo conceito de predestinação de João Calvino. Uma prova de que é fácil ser conservador quando “a vontade de Deus” te favorece. O racismo também está em desqualificar o cabelo crespo, o candomblé e a cultura afro-brasileira em geral. Não me surpreende que venha de Marcos Feliciano a manutenção da idéia de que “a África é um continente amaldiçoado”. O racismo consegue juntar descriminação racial e intolerância religiosa no mesmo discurso, e choca menos a sociedade do que um beijo gay na novela. Em ambientes “conservadores”, questionar pode ser “enxergar racismo em tudo”. É por isso que eu digo e repito: obrigado professores de história. Vocês me deram as ferramentas necessárias para melhorar o mundo. Depende de mim colocar em prática todos os dias, seja em Salvador ou aqui na Patagônia, onde vivo há três meses. 

* Por tanto gostar de história e entender a importância das lembranças de datas, estátuas e nomes de lugares (continentes, países, estados, cidades, bairros e ruas), eu imaginei como seria bom se...

- o 20 de novembro, data de morte de Zumbi dos Palmares, fosse um feriado de 4 dias e as famílias pudessem viajar para celebrarem juntas, como no natal, com tardes de caruru e noites de maracatu, capoeira e tudo que lembre a cultura afro-brasileira.

- as estátuas de Duque de Caxias fossem arrancadas como as de Saddam Hussein no Iraque após invasão estado-unidense ou as de Franco na Espanha após a ditadura no país ibérico. Não estou comparando os personagens, mas as atrocidades cometidas pela guerra, que não deveriam ser orgulho para ninguém.

- o continente em que vivemos deixasse de se chamar América, e a Colômbia também ganhasse outro nome. Afinal, Américo Vespúcio e Cristóvão Colombo não merecem mais essa homenagem do que nossos libertadores.

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Torcedores do Huachipato na Patagônia já planejam ver final 'in loco'

Torcedores do Huachipato em Punta Arenas / Divulgação
A derrota no Morumbi por 1 a 0 para o São Paulo, pelas oitavas da Sul-Americana, não intimidou os torcedores do Huachipato, espalhados por todo Chile, inclusive na longínqua Patagônia. Mesmo sem poder acompanhar de perto o time nesta quarta-feira (15), às 19h30, no estádio CAP, dois apaixonados pelo único representante do Chile no torneio já estão pensando em assistir de perto a decisão pelo título, que se depender do otimismo andino, será no mesmo estádio da partida de mais tarde, a 2.607 km da cidade em que moram.

Conhecido no Brasil após surpreendente vitória em Porto Alegre contra o Grêmio, na estreia da Libertadores de 2013, o clube chileno está sedeado em Talcahuano. Apesar de se localizar no sul do país, a cidade do adversário do tricolor está mais próxima da capital Santiago (522 km) do que da cidade mais austral do Chile, Punta Arenas, o que não impede Rodrigo Aguilera de procurar outros torcedores no maior centro urbano da Patagônia Chilena. "Não sei quantos torcedores do Huachipato têm em Punta Arenas, mas têm, e estou tentando juntá-los para formar a 'Barra Austral' de Huachipato", comenta Aguilera, que já se prepara para um inédito título internacional. "Estarei contra o vento e a maré. Tenho um lugar reservado no estádio. Não há alegria maior do que ser campeão. Vou com meus filhos, que são 'acereros' (apelido dado aos torcedores da equipe) como o pai", completa.

Um dos amigos de Rodrigo que compartilham da mesma predileção clubística em Punta Arenas é Gabriel Pincheira. Apesar de se dizer consciente das dificuldades de enfrentar o São Paulo, o sonho da final alimenta suas expectativas. "Espero que Huachipato fique de pé depois do jogo no Brasil. Agora a partida é no Chile e somos donos da casa. Se chegar na final, claro que irei e com certeza isso acontecerá e seremos campeões. Temos time e vontade", profetiza Gabriel.

Paixão antiga

Por influência do pai, Gabriel Pincheira se tornou torcedor da equipe de Talcahuano, mesmo se afastando da sua cidade natal ainda na infância e sem nunca ter sido frequentador de estádio. "Infelizmente não podíamos ir ao estádio por problemas financeiros e porque vivíamos em um povoado chamado Ercilla. Agora que vivemos em Punta Arenas, as únicas formas de ver os jogos são por rádio ou TV. O único problema é que quase sempre é por rádio, porque as equipes de província não tem muita cobertura. Só se foca nas equipes de Santiago", questiona.

Assim como para Gabriel, o amor clubístico nasceu na infância também para Rodrigo. "Eu cresci vendo o Huachipato no estádio. Meus amigos e vizinhos também apoiavam a equipe, que estava na Compañia de Acero del Pacifico - Companhia de Aço do Pacífico (CAP), onde trabalhavam os pais e vizinhos em Higueras (região residencial de Talcahuano). Dessa forma o vínculo com o clube estava presente em todo momento. Eu queria trabalhar no Huachipato", relembra Rodrigo.

"Era um ponto de reunião das famílias do setor de Higueras e arredores, e além do futebol se praticavam muitos esportes, como hockey, tênis, atletismo, patinação artística, etc. Entre as atividades que mais atraiam a comunidade estavam as festas de fim de ano, onde se realizavam apresentações de contos e voluntários de colégios participavam. Essa tradição se perdeu com o tempo, mas marcou muitas crianças da época", completa Rodrigo.

O vendedor do confronto entre Huachipato e São Paulo enfrenta Emelec do Equador ou Goiás pelas quartas da Copa Sul-Americana. No primeiro jogo, a equipe equatoriana venceu por 1 a 0 dentro de casa, e a partida de volta acontecerá nesta quarta-feira (15), às 22h, no Estádio Serra Dourada, em Goiânia. Para passar pelo Huachipato, o São Paulo pode empatar ou perder por até um gol de diferença, desde que faça pelo menos um gol. Uma eventual vitória de 1 a 0 da equipe chilena leva a decisão da vaga para as quartas para os pênaltis.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

A verdadeira revolução vem do amor

Fotos: Divulgação
Quem vencer a eleição presidencial não terá vida fácil a partir de primeiro de janeiro de 2015. Precisará de muita paciência para lidar com a Câmara. Entre as instâncias políticas, enxergo o parlamento como a mais apta a conquistar melhorias ao país, mas a vitória de tantos candidatos que exalam ódio através do discurso pouco ajudará Dilma Rousseff ou Aécio Neves. Temas importantes deixarão de ser discutidos com a configuração atual. No meu ponto de vista, todavia, a verdadeira revolução não vem do legislativo. Tampouco do executivo, judiciário, do Ministério Público, da Polícia Federal ou da democratização dos meios de comunicação.

A verdadeira revolução brota do lado esquerdo do peito de todos os brasileiros, e não há equívocos eleitorais que não possam ser corrigidos com amor. Como já escrevi em outras postagens, prefiro um político “suspeito” sob pressão do que um acomodado ao cargo que tenha boa índole. O que dizer então de um congresso pressionado por uma população com sentimentos nobres?

Foto: Mark Blinch/Reuters


O amor não é tudo, mas não há nada sem o amor. A humildade de reconhecer que não entende tanto sobre um assunto ao invés de opinar sobre o que não sabe consiste em ter coragem e amor próprio. Ninguém sabe de tudo, tampouco precisa ostentar conhecimento, que deveria ser uma dádiva a ser repartida, e não uma joia rara que causa cobiça. O mundo seria um lugar melhor se informações fossem checadas antes de serem compartilhadas no Facebook, mas se os feeds de notícias continuam com a difusão dos sentimentos menos nobres, talvez seja a hora de responder essas postagens com amor, e não com mais agressões.

Muitas transformações sociais foram conquistadas com derramamento de sangue. Todas as ex-colônias do mundo se tornaram independentes através de conflitos armados, com exceção da Índia. Intolerância religiosa, homofobia e racismo já precisaram ser combatidos com a força. Figuras emblemáticas como Maria Quitéria e Nelson Mandela hoje são reconhecidas por gente de variadas predileções partidárias, mas precisaram pegar em armas para alcançarem seus nobres objetivos. No entanto, elxs pegaram em armas para que nós, nos dias de hoje, não precisássemos atacar uns aos outros. O Twitter com seu disparo de 140 caracteres e o Facebook com memes atômicos não deveriam ser as ferramentas da nossa revolução. São armas que, usadas dessa maneira, nos levam a matar uns aos outros.

Imagem: Divulgação


Ironias, acusações sem prova e adjetivações mesquinhas, que variam de petralha a coxinha, não são engraçadas. A escolha do candidato se dá pela convicção de que o país estará melhor em suas mãos e esse tipo de humor vai contra essa ideologia. O Brasil não pode ser um bom lugar para se viver dessa forma.

#tolerância #respeito #amor #PazNoFacebook #PazNoTwitter

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Inocentes, mas sabem de tudo

Neymar realiza sonho de criança sul-africana de conhecer jogadores brasileiros l Foto: Agência AP
A inocência, não necessariamente, se opõe à sabedoria. Tampouco a sabedoria está necessariamente ligada às primaveras vividas. Fui incumbido dessa reflexão após uma tarde sendo “tio” de três garotinhos chilenos que, ao constatarem minha nacionalidade, ressaltaram de imediato o talento dos jogadores brasileiro ao invés de mencionarem os 7 a 1 sofridos pela Seleção no mundial, ou até mesmo os problemas sociais do Brasil, como geralmente citam os que “não sabem de nada”. 


Ao passear pelas ruas e observar o baba (ou “pichanga”, como se chamam as partidas de futebol informais aqui no Chile), perguntei se poderia brincar também. Nada mal para uma tarde de frio em Puerto Natales, cidade em que estou vivendo há duas semanas. Meu sotaque denuncia minha “estrangeirice” e naturalmente a pergunta pelo meu país de origem veio antes de a bola rolar. “Brasil”, eu disse, para em seguida ouvir um “ohhhhhhh, você conhece Neymar?”. Sim, eu conheço Neymar, assim como Marcelo, Oscar, Willian e David Luiz. Todos eles me representam, mesmo nos tempos de cólera em que o futebol historicamente sempre resistiu. 


Para essas crianças, aparentemente na faixa de 10 a 12 anos, os cabeludos da Seleção Brasileira eram os maiores expoentes de uma nação de 200 milhões. Sem dúvida, responsáveis pela boa imagem que muita gente do mundo todo tem de nossa pátria amada, coisa que nenhuma goleada da Alemanha irá nos tirar. Para esses apaixonados por futebol, Neymar e companhia não são culpados pelas mazelas do país. E de fato, não são mesmo. Sabem de tudo essas crianças, que não foram contaminadas pela ingenuidade (ou seria maldade?) dos partidaristas brasileiros, que com insultos de “reaça” ou “petralha” aos adversários, acham que lutam por um país melhor. Esses, como diria Cumpadi Washington, “não sabem de nada”.


Bom senso e cordialidade são artigos em extinção nas redes sociais nos meses que antecedem uma eleição. Acusações de conspiração pela morte de candidato, informações falsas, editadas em paint e sem fonte sendo compartilhadas por milhares (ou até milhões) de usuários no Facebook e a banalização da violência com memes insinuativos fazem o futebol, um dos maiores expoentes na formação da cultura brasileira do Século XX, ser tratado como pão e circo. Coisa de “povo”, de gente imatura, de vagabundo, de parasita do governo que vive de “bolsa esmola”. Porque para transparecer seriedade e credibilidade, a ideia é agredir uma senhora que lutou pela liberdade durante a ditadura militar, que foi torturada e que chegou à presidência de forma democrática (por mais questionável que seja a democracia do país, como vou citar no parágrafo abaixo). Ou, do lado oposto, fazer chacota com o suposto consumo de drogas de dois candidatos, inclusive com trocadilho entre o sobrenome de um deles e a cocaína, enquanto estas mesmas pessoas se dizem abertas a debater a descriminalização das drogas e o tratamento dado pelo Estado aos dependentes químicos.

Pior do que o mal gosto dos memes é que muita gente os leva a sério

Após as manifestações de junho de 2013, escrevi em uma postagem no blog que eu prefiro um político que não inspire confiança sendo pressionado pela população a um político honesto na zona de conforto. O mesmo vale para as eleições de 2014: independentemente de quem ganhe, é a pressão popular que dará as diretrizes. Político não vive sem voto, principalmente em um modelo em que a imagem e as palavras fáceis valem mais do que o rompimento com heranças seculares e implementação de projetos de longo prazo, que durem mais do que quatro anos. Afinal, quem é escolhido pelo voto popular precisa mostrar serviço, e não dá para ser marqueteiro se seu adversário político conclui seu projeto. Nesse ponto, a democracia brasileira é frágil. O dom da oratória é mais precioso do que o conhecimento técnico. O carisma vale mais do que as ideias.


Uma população conservadora que exige implementação da pena de morte, redução da maioridade penal e maior rigor da polícia militar, infelizmente, terá seus desejos realizados por quem quer que seja eleito, se a tendência for a expansão dessas ideias. Sem reforma política e sem um modelo com financiamento público de campanha, os mesmos grupos (bancos, empresas de construção civil...) interessados em eleger seus líderes devem manter a injeção de dinheiro nos seus candidatos “favoritos” e pautarão os programas de governo, que precisam de “aval” da população. 


O autoritarismo cresce a partir do imediatismo, da sede de fazer justiça com as próprias mãos usando como pretexto a negligência do estado, mas sem combater o problema na raiz e sem medir as consequências que essas medidas acarretarão. O olho por olho, dente por dente, é alimentado diariamente pela TV aberta e rádio, que são os veículos de comunicação muito populares e pouco educativos. A violência policial mata muito, principalmente jovens negros e da periferia, muito diferentes das apresentadoras loiras de telejornal que legitimam linchamentos ou de parlamentares brancos que tratam um livro escrito há mais de mil anos como constituição ( a mais recente do Brasil data de 1988).  


O Brasil, com todos os seus defeitos, provoca brilho nos olhos de muitos estrangeiros, inclusive muitos inocentes como as crianças chilenas que conheci. Esse olhar positivo não aliena e não machuca. Tampouco cura feridas. Mas pode ajudar a compreender como se chegou aos dias de hoje, e o que pode ser feito por dias melhores. Aceitar primeiro. Agir depois. A meditação ensina muito sobre ter “timing” e não agir por impulso. E o futebol, como todos os esportes, ensinam valores lindos. Ao menos nos gramados a regra é clara e Neymar perdoa Zúñiga, que não cometeu nenhum crime, com um abraço. O ódio, quando se infiltra no futebol, geralmente vêm das arquibancadas, como as ameaças ao lateral colombiano nas redes sociais, talvez inspirados pela onda de “linchamento”. Por um país com mais Neymares e menos usuários raivosos e inconsequentes no Facebook.

sábado, 6 de setembro de 2014

Gol de Neymar, e não da Seleção

Neymar marca primeiro gol da "nova era Dunga" I Foto: AFP
 
O Brasil foi superior à Colômbia no jogo desta sexta-feira (5), nos Estados Unidos. A vitória de 1 a 0 em Miami foi merecida e contra um adversário que levava vantagem por ter a mesma base que foi sensação da Copa de 2014, enquanto os comandados de Dunga juntam os cacos da pior derrota da história do futebol do país.

Toda análise que ressalte o domínio verde e amarelo em campo, porém, não pode dispensar uma contextualização mais profunda sobre a estrutura precária do futebol brasileiro, tão discutida pelo Bom Senso F.C. O grupo de jogadores que remam contra a corrente da CBF questiona, por exemplo, o poder das federações estaduais, que com um sistema viciado de eleições, mantêm presidentes por décadas, além do esdrúxulo calendário, com tantas datas desnecessárias que mais servem para atender interesses políticos do que os anseios do torcedor. Não fosse a paixão, o Brasileirão já teria sido trocado pela Premier League.

Mas futebol não é um produto qualquer, não se vira a casaca como se opta por trocar de empresa de telefonia, embora quem não entenda de bola pouco se importe com estas distinções.

O gol do triunfo contra a Colômbia foi de Neymar, de falta. Ponto para o jogador que merecia estar mais bem acompanhado no scratch canarinho. As vezes me pergunto: será que dá para falar em “safra ruim” em um país de 200 milhões de habitantes, com tanta gente que pratica futebol? A falta de talento é fruto de um cenário corruptivo, com agentes Fifa com status de artista, transferências duvidosas para ligas longínquas e falta de esmero em peneirar e lapidar talentos, além de uma mentalidade retrógrada, de que por exemplo o primeiro volante não tem obrigação de ter um bom passe, o que faz a Seleção ter dificuldade para sair jogando com poucas opções no meio e um Luiz Gustavo limitado ao seu papel de marcador. A sede por resultados prejudica o trabalho das diretorias, sedentas por vitórias imediatas, e sepulta trabalhos de longo prazo como o do Palmeiras com o técnico argentino Ricardo Gareca, demitido nesta semana. Ainda que vença a Copa América, a Copa das Confederações e até a Copa do Mundo de 2018, o Brasil necessita de gols fora do campo, pelo bem do nosso futebol. 

A derrota para a Alemanha não foi um acidente, embora aquela equipe de Scolari, com todos os seus defeitos, não era mais frágil que Argélia e Gana. A campanha da atual campeã mundial foi irregular, com três empates no tempo normal, duas vitórias pelo placar mínimo e duas goleadas. O Brasil não poderia ser presa fácil, mas por muito tempo, a Seleção era como uma ilha de prosperidade em um mar de turbulência que historicamente é o Brasileirão e a vida dos clubes do país. Até hoje se discute, por exemplo, quem foi o campeão brasileiro de 1987, assim como a justiça na distribuição das cotas de televisão. Essas questões, enquanto não forem resolvidas, tornam a liga do país desinteressante para quem não torce por um clube do certame.

ESPN Brasil - 1 x 0 – ESPN Colômbia
 
Programa "Balón Dividido", da ESPN colombiana I Imagem: Reprodução

Nessa primeira semana morando no Chile, tenho assistido muitos canais de esporte, e alguns deles reservam quadros específicos para cada país do continente, como a ESPN, que tem os programas Balón Dividido, para colombianos, e Simplemente Fútbol, para argentinos. Diferente da ESPN Brasil, os comentaristas mais parecem torcedores com paletó.
 
A repórter colombiana, antes de entrevistar Falcao Garcia na saída da equipe do estádio de Miami, chegou a agradecer ao jogador por seu desempenho pela seleção e ressaltou a falta que ele fez no mundial, antes de fazer uma pergunta chapa branca sobre sua ida ao Manchester United. Os três comentaristas insistiam na ideia de que não era preciso se preocupar com a derrota para o Brasil porque se tratava apenas de um amistoso e que apoiarão “Los Cafeteros” na vitória e na derrota. São nessas horas que eu sinto falta de um Mauro Cezar Pereira. Não é possível que as ESPN colombiana e argentina sejam tão diferentes da brasileira, que se destaca no país justamente pela independência.

Procurei no site da ESPN Brasil e só vi uma coluna opinativa sobre o jogo desta sexta-feira (5). Foi de André Rocha, que embora não apareça na TV, tem no blog “Olho Tático” uma ferramenta muito acessada pelos apreciadores do bom jornalismo. O “complexo de vira-lata” não é tão simples de ser combatido, principalmente em um momento turbulento que vive o país, com as eleições pegando fogo e com a auto-estima do brasileiro fragilizada pelos 7 a 1, depois de tanta aproximação entre povo e jogadores. Muita gente contrária à realização do mundial no país abraçou os comandados de Scolari. Mas no quesito jornalismo esportivo, ou mais estritamente, no quesito ESPN, posso dizer que o Brasil vence ao menos os países vizinhos.

Basquete
 
Seleção Brasileira de Basquete I Foto: Getty Images

Neste domingo (7), às 17h (de Brasília), outra Seleção Brasileira vai precisar muito de seu apoio. Longe de alcançar a popularidade do futebol, o basquete do país passa por reformulação desde 2010, quando o treinador argentino Ruben Magnano, campeão com a Argentina na Olimpíada de 2004, assumiu a equipe verde e amarela para fortalecê-la e torná-la competitiva até os Jogos Olímpicos de 2016, que acontecerão no Rio de Janeiro. A adversária das oitavas da Copa do Mundo, que é realizada na Espanha, é nada menos que... a Argentina, nossa algoz na modalidade. Como estou distante e não tenho compromissos jornalísticos, envio daqui da Patagônia toda a energia para os meninos de Magnano. Os brasileiros, é claro.
 
Bahia
 
Bahia eliminou o Internacional da Copa Sul-Americana I Foto: Ricardo Duarte/Ag. RBS/Folhapress

O Esquadrão de Aço conseguiu classificação para a fase internacional da Copa Sul-Americana. Enfrentará o vencedor de Universitario Sucre, da Bolívia, ou Universidad César Vallejo, do Perú. A mudança da tabela fez o Bahia evitar o confronto com Huachipato do Chile ou Universidad de Quito do Equador, equipes mais fortes. Então vai ser fácil para o Bahia, certo? Errado, pelo menos para um comentarista da Fox Sports (parecia ser argentino). Ao analisar o triunfo do tricolor sobre o Colorado, disse “o Bahia é um time pequeno como a Ponte Preta. Talvez não tão pequeno como a Ponte Preta, pelo menos nos últimos tempos”. Sou torcedor do Bahia e não vejo demérito em reconhecer o tamanho do clube.

É um time pequeno sim. Reconhecer isso ajuda, por exemplo, a se situar no cenário atual. Estar na zona de rebaixamento não é uma tragédia para um clube com menos bala na agulha que os grandes, tampouco motivo para o torcedor abandonar o time. O torcedor do Bahia é resultadista, não reconhece o momento histórico com a democratização e está cada vez mais parecido com o do Vitória nesse quesito, que anteriormente diferenciava os torcedores da dupla Ba-Vi. Na Inglaterra, vi jogos de times de terceira divisão com o estádio lotado, e nem valia acesso. Quando se gosta, se compreende. O torcedor do Bahia sofre muito porque a paixão não o deixa enxergar o seu verdadeiro tamanho. Boa sorte para Bahia e Vitória na Copa Sul-Americana. Estarei acompanhando os jogos na Fox latina.

sexta-feira, 8 de agosto de 2014

One month later 7-1

Photo: AP
Until today I have nightmare with a german goals in World Cup. The most difficult was the third goal, that who scored was Kroos. Then, I've stopped follow the match. It doesn't seem like yesterday. It seems that happened a thousand years ago, like old images of first world cup. It was a just one month ago.

In all this time between the brazilian deception and today a lot of things happened. Scolari is coach of other team (Grêmio), Globo (the most influent brazilian TV channel) want change the structure of national football and the "Seleção" (how us brazilian say our national team) have new schedule for 2014 with new coach, Dunga (the same coach of World Cup 2010). And it's the first time that I don't miss the World Cup atmosphere.

I lived great times here in Brazil of course. I worked hard as a reporter of brazilian website, mostly in day of matches in Salvador, my hometown and the city where I live. As a spectator, I was at the match Spain - 1 x 5 - Netherlands. But after july 8, all the World Cup songs became bad moments. It's impossible change the history: here for a long time, when people will search informations about World Cup 2014, the more important episode will be the 7-1.

I'm proud to be brazilian for many reasons. I like our accent, too different than portuguese accent. I like the easily to make friends and meet people here and the brazilian cooking and music. And I'm proud to be brazilian for football also, why not? When I was in Europe and people asked me "where are you from?" I answered "Brazil", and in the same moment football was mentioned. It will be the same after the 7-1?

Veja essa postagem em português (clique aqui)

1 mês dos 7 a 1

Até hoje tenho pesadelos com os gols da Alemanha. Especificamente, o mais doloroso foi o terceiro, de Kroos, que me fez parar de assistir à peleja. Ou seria um baba? Não parece que foi ontem. Parece ter sido há mil anos, com imagens registradas em tom pastel, com o amarelo desbotado da Seleção ofuscado pela vibrante camisa rubro do adversário. Foi há um mês.

Durante esse tempo muita coisa aconteceu. Scolari já tem um emprego, a Globo se diz interessada em estudar uma mudança na fórmula do Brasileirão e o scratch canarinho já tem agenda para o restante do ano, com Dunga no comando. E pela primeira vez eu não sinto saudade do clima de Copa.

Foram momentos maravilhosos aqui no Brasil, é claro. Trabalhei muito, principalmente nos dias de jogos em Salvador, assisti à reedição da Copa anterior e vi de perto cinco dos seis gols desse jogão entre Espanha e Holanda. E eu achando que o maior mico daquele mundial seria os 5 a 1 sofridos pela defensora do título. Mas aquele 8 de julho transformou as músicas da Copa em trilha sonora de más recordações. Não adianta. Quando daqui a alguns anos as pessoas se perguntarem sobre o fato marcante do mundial sediado no Brasil, a lembrança dos 7 a 1 será o primeiro episódio citado.

Eu tenho muito orgulho de ser brasileiro por muitos motivos. Gosto dos sotaques da gente, o que prova que subvertemos a língua do colonizador com classe. Me admiro pela facilidade que os brasileiros têm em fazer amizade, o que não torna os brasileiros melhores ou piores que os outros povos, mas faz sentir-me em casa aqui. Sou fã da culinária e comida que trazem influências índígena, africana e europeia. E também tenho orgulho de ser brasileiro pelo futebol que se pratica aqui, e nunca tive vergonha disso. Sempre fui reverenciado em estádios de futebol que visitei e nos babas em que joguei na Europa por ser brasileiro. No estádio do Leyton Orient, ao revelar minha nacionalidade, os seguranças sorriram e vibraram. Será que depois dos 7 a 1 as coisas mudarão?   

domingo, 6 de julho de 2014

A publicidade que mata

Torcidas juntas em dia de Argentina x Bósnia, no Maracanã, no dia 15 de junho - Foto: Agência EFE 
Embora não sejam favoritos absolutos a chegarem na final da Copa do Mundo, no domingo da semana que vem (dia 13), Brasil e Argentina geram a expectativa de formar a final mais esperada (e temida) pelos torcedores da equipe anfitriã. Já ouvi quem disse que preferia Alemanha x Holanda ao clássico sul-americano, para "não correr o risco de ver os hermanos campeões em casa". Rivalidades futebolísticas à parte, que são naturais e não precisam de campanhas para serem ampliadas, a coisa está passando do limite, e eu temo por uma onda de xenofobia, que não é típica do brasileiro.

A jornalista irlandesa Helen Joyce, que trabalhou no Brasil como correspondente do The Economist por três anos e meio, disse que o brasileiro geralmente trata bem os estrangeiros, mas deixa a cortesia de lado com os próprios conterrâneos de regiões mais pobres, como o Nordeste (o que é tão lamentável quanto). Características sociais são mutáveis e a publicidade, a meu ver, tem atiçado os ânimos entre brasileiros e argentinos, não é de hoje.

Já houve briga entre torcedores dos países vizinhos em Belo Horizonte no mês passado, com direito a garrafadas. Felizmente ninguém se feriu com gravidade. 


O conteúdo publicitário é absorvido de maneira diferente por cada pessoa. A autocrítica varia de telespectador para telespectador, e não acho que os publicitários que idealizam campanhas como as da Skol podem ser eximidos de responsabilidade pela selvageria que acontece dos dois lados. Há muitos argentinos também sem autocrítica, que sozinhos, em pequenos grupos ou protegidos pelas suas barra bravas (espécie de Torcida Organizada nos países vizinhos), vão para o confronto, mas como não conheço tanto o que se passa por lá, me atenho ao que acontece na América Lusófona. Já houve até jornalista esportivo que "vibrou" quando policiais no Estádio Independência, também na capital mineira, bateram nos jogadores do Arenal Sarandí no ano passado.


Se a agressividade natural (misturada ao álcool) já pode colocar em perigo torcedores dos dois lados, as campanhas publicitárias pouco ajudam a pensar em cortesia com o adversário, semelhante a de David Luiz com o colombiano James Rodríguez. A Coca-Cola fez um comercial mostrando a amistosidade entre brasileiros e chilenos.


Mas a mesma marca de refrigerantes lançou durante a Copa América de 2011, na Argentina, um comercial em que um portenho se infiltra na torcida verde e amarela e corre risco de ser agredido ao gritar um gol de sua equipe. 


Nelson Mandela, antes de se tornar presidente da República da África do Sul, ficou preso por 27 anos durante o apartheid. Ao ser solto, muitos brancos, descendentes de europeus que foram a favor da manutenção do regime que segregava negros e brancos, esperavam vingança do novo líder nacional. O que não aconteceu. "Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua pele, por sua origem ou por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender a odiar, podem ser ensinadas a amar", disse Mandela.

Em tempos de tratar como "chatice politicamente correta" reflexões como essa, eu penso que humor deve trazer graça. E eu não vejo graça na manutenção de uma ideia que só gera ódio, aprecia a trapaça para se conseguir triunfo a qualquer custo, corre o risco de sair da brincadeira e ameaça ceifar vidas. Não é engraçado ler uma notícia sobre uma briga, que é fruto do bombardeiro de informações para potencializar uma rivalidade que por si só já seria uma ameaça. Divertido mesmo é ir ao estádio e voltar são e salvo, com vitória ou derrota.

Obs: Recomendo a leitura dos artigos "Contra o antiargentinismo" (clique no título, que tem link que leva para a página), de Fernando Faro, e "Carta aberta às humoristas do Brasil", de Alex Castro. Ambos os textos abordam o tema da minha postagem acima. Toda xenofobia deve ser combatida. Brasil e Argentina não têm razões históricas do patamar de Brasil e Paraguai, que foi tema da minha postagem "Guerra do Paraguai nos olhos dos outros é refresco...", em 5 e agosto do ano passado. Apesar do conflito, a rivalidade entre brasileiros e paraguaios não é difundida nos meios de comunicação (ainda bem).

sábado, 5 de julho de 2014

Jogadores-torcedores & torcedores-justiceiros

Jogadores fazem símbolo do "É Thois" para Neymar - Foto: Divulgação
O Brasil jogou nesta sexta-feira (4) um Futebol maiúsculo. Eu não poderia deixar o triunfo diante da Colômbia passar sem uma postagem no meu blog. Após o apito final, em meio a gritos e abraços pela classificação às semi, eu já sabia o título: “Me sinto menos torcedor do que os jogadores”. Me emocionei, mas não tanto quanto eles, aqueles caras supostamente “cheios de dinheiro que não estão nem aí para resultados, porque continuarão ricos, ao contrário dos torcedores, pois esses sim amam futebol”. Quando escuto discursos como esse, passo a questionar se os murmuradores apenas enxergam a felicidade por via das cifras. Afinal, se é tão difícil imaginar que David Luiz e Thiago Silva, mesmo bem sucedidos, sentem emoção, é porque provavelmente se no lugar deles estivessem, os murmuradores nada sentiriam. Eles, os “chorões”, são a prova de que há vida além do dinheiro, e o dinheiro não compra a emoção de vencer uma partida em seu país, mesmo aos trancos e barrancos.

Foto: Uarlen Valerio / O Tempo
Em uma semana triste, com desabamento de um viaduto que matou duas pessoas e deixou 22 feridas em Belo Horizonte, o luto é aceitável. Eu particularmente passei a refletir o quão displicentes foram os “responsáveis” por essa obra (e tantas outras) e como o “jogo de empurra” esconde os envolvidos, assim como as oito mortes de operários nos estádios do mundial de 2014 (uma em Brasília, uma em Cuiabá, três em São Paulo e três em Manaus). Uma proteção covarde, que não recuperaria as vidas ceifadas sob concreto, mas poderia levar outras tantas tragédias a serem evitadas. A negligência se garante sob a impunidade.

Em meio a toda essa turbulência envolvendo tragédia em Belo Horizonte, cidade em que a Seleção enfrenta a Alemanha nesta terça-feira (8), e fim de Copa para o maior expoente da equipe anfitriã, Neymar, foi inevitável sair do futebol para entrar em um assunto tão sério quanto: o sentimento de ódio e vingança dos brasileiros, especialmente nos últimos anos, que foi tema da minha postagem “Somos tão cordiais assim?”, de 30 de junho. Tão sério quanto, porque futebol para mim é sério e não pode ser apontado como responsável pelas mazelas do país. Por si só, isolado, desperta paixões, o que seria suficiente para respeitá-lo, afinal, não há sentido na vida em sociedade sem suas simbologias e rituais, que pedem licença a razão. “Qual a graça de 22 homens correndo atrás de uma bola?”, se perguntam até hoje alguns, sem obterem resposta. Mas o futebol também diz muito sobre o dia-a-dia e "abre brechas" para os sentimentos menos nobres aflorarem, sob a mesma desculpa dos linchamentos de que a emoção ofuscaria o caráter. Mas não ofusca: revela.

Ouvi a notícia de que Neymar estaria fora da Copa no rádio, enquanto dirigia, no caminho para o aniversário de um amigo. A incredulidade tomou conta de mim, como apenas em momentos especiais do esporte. Morte de Senna, eliminações da Copa, rebaixamentos do Bahia e ataque de padre irlandês ao maratonista Vanderlei Cordeiro de Lima na Olimpíada de 2004, na Grécia. Naquele momento um sentimento de “justiceiro” ameaçou se apossar de mim. A vontade era de escrever logo uma postagem com um título que fosse, no mínimo, “Vai ficar barato dona Fifa?”. Mas respirei fundo. Sabia da responsabilidade de escrever com os nervos à flor da pele, especialmente para mim, jornalista. Estava desacostumado a torcer pela Seleção na Copa. Digo, “torcer pra valer”, já que havia feito cobertura dos últimos três jogos do Brasil na Fan Fest de Salvador e no Pelourinho. Não é a mesma coisa assistir a um jogo com o compromisso de ser ágil na cobertura, repercutir para os leitores do site em que trabalho a atmosfera das aglomerações. 

Infelizmente, na mesma proporção em que Neymar recebe mensagens de solidariedade de pessoas do mundo todo (inclusive minha), brasileiros hostilizam o lateral-direito da Colômbia, Zúñiga, que quebrou uma vértebra do camisa 10 canarinho. As mensagens são pesadíssimas e há até ameaça de morte a ele e sua filha. Não recomendo a leitura para quem não tem estômago forte. A onda de linchamentos no Brasil, provocado sob a desculpa de substituir segurança pública e a justiça, dão outra característica ao brasileiro, descrito como cordial por Sérgio Buarque de Holanda. 

O suposto desequilíbrio emocional dos jogadores nos primeiros jogos da Copa parecem se refletir nas postagens de torcedores que não respiram fundo ou não pensam duas vezes antes de agredir Zúñiga nas redes sociais. E se foi maldade ou não, se merece punição ou foi lance normal do jogo, pouco importa. Me preocupa mais a hostilidade. Essa sim merece ser observada, mais do que qualquer entrada violenta em Neymar nesta Copa.




Foto: Reuters

Obs: Acho que Zúñiga, que também entrou forte em Hulk, deveria pegar um gancho grande pela imprudência, assim como a arbitragem que deixou o jogo correr dessa forma. Recomendo a leitura do post "O NACIONALISMO NAZISTA DO FUTEBOL BRASILEIRO", de Ariane Ferreira. Ganhando ou perdendo para a Alemanha na terça-feira (8) ou na final no domingo (8), estou muito orgulhoso dessa Seleção. Os jogadores estão fazendo o que podem, mas o time não foi bem preparado, o Brasil não tem por tradição manter uma base para dar continuidade a um projeto longo e Scolari, a meu ver, não criou um repertório rico de jogadas. O time chegou às semi pelo talento individual dos jogadores e apoio da torcida.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Na ‘Copa das Copas’, só a Seleção não se diverte

Capitão Thiago Silva chora nos braços de Scolari - Foto: Ricardo Corrêa
Se atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu, em meio a Copa do Mundo de 2014 só não se diverte a equipe anfitriã. Com seus altos e baixos, os atletas e delegações dos outros 31 times já curtiram ou curtem muito a atmosfera da maior festa do futebol mundial, que acontece de quatro em quatro anos e, especialmente de 12 de junho a 13 de julho de 2014, tem o prestígio de ser recebida pela nação mais vitoriosa da história do torneio.

A “ousadia e alegria” deram lugar a “agressividade e medo”. Está certo que entre a esbórnia geralmente atribuída aos boleiros brasucas, que “não teriam amor à camisa e só querem saber de dinheiro”, e o “chororô” constante do hino nacional ao apito final, eu fico com a segunda opção. Me sinto mais representado como torcedor (não como jornalista). Mas não foi assim que a Seleção colecionou cinco estrelas*¹. Pelo contrário. Os momentos de maior fragilidade emocional foram atribuídos às derrotas mais marcantes, seja na apatia em 1950 e 1998 ou na agressividade exacerbada em 1954 e 1974. Roer unha, se descabelar e temer o pior são atribuições exclusivas de torcedores.

A emoção demonstrada pelos jogadores da Seleção Brasileira, a meu ver, é semelhante a dos estudantes que vão prestar vestibular conscientes de que não deram o melhor de si no cursinho. Ali, de frente para a prova, não resta mais nada a não ser concluí-la e torcer para que a preparação deficiente não culmine em reprovação. Os “CDFs” ao menos sabem que deram o melhor de si e, não é à toa, são maioria entre os aprovados nos cursos mais difíceis. 
Neymar chora antes de empate contra o México - Reprodução / TV Globo

O futebol brasileiro, historicamente, nunca teve planejamento. É vitorioso pela qualidade técnica dos jogadores e em alguns casos por inovações táticas (o que não se aplica ao time de Scolari)*². O medo de perder a Copa fez o comandante verde e amarelo pedir ajuda. Segundo o Terra, em plena Granja Comary, Scolari chamou cinco jornalistas*³ para pedir apoio contra o que ele acredita ser um “complô” contra sua equipe. Mas o certo é que a Seleção Brasileira não curte a atmosfera da Copa. Nem seu treinador, nem os jogadores e até mesmo o assessor de imprensa da CBF, Rodrigo Paiva, que agrediu o jogador chileno Pinilla no último sábado (28).
  
Até mesmo os jornalistas, alguns deles sofrendo tantas críticas quanto os jogadores brasileiros (e que segundo Neymar, precisam de terapia tanto quanto seus colegas), dividem o olhar entre a cobertura e o deslumbramento de fazerem parte da “Copa das Copas”. Muitos fãs do esporte esperam da imprensa uma postura de apoiadora do “scratch canarinho”, e se decepcionam com os artigos dos excelentes Mauro Cezar Pereira e Juca Kfouri. Ora bolas, o que se deve esperar de um bom jornalista é justamente o desvinculamento das instituições. Não existe “momento certo ou apropriado” para pontuar as falhas da Seleção. E justamente por isso os considero os melhores nessa Copa. Na postagem “Quero me orgulhar da equipe brasileira. Para isso Felipão e o time precisam fazer sua parte”, Mauro diz evitar proximidade com técnico e jogador porque acha melhor “manter distância e independência para não distorcer pelo constrangimento de criticar um ‘amigo’”. É a postura que acho mais apropriada a um profissional da área, diferente de Mário Sérgio, da Fox Sports, que já foi técnico e, corporativista, chegou a brigar no ar com o colega de emissora Rodrigo Bueno, quando este criticou a qualidade dos técnicos brasileiros.


A Seleção Brasileira parece carente de elogios, mesmo jogando em casa. Com tantos jogões e chuva de gols, os anfitriões se sentem deslocados. Xodó da torcida nos estádios, a Costa Rica sim parece ser a dona do pedaço. No lugar de corrigir as graves falhas da equipe em campo, porém, o emocional dos atletas virou a preocupação de Scolari, ou pelo menos sua desculpa. Nos diversos veículos que cobrem a Copa, o “chororô” virou tema até de entrevista com terapeutas. Freud explica?

*¹ Em 1958, na Suécia, os comandados de Vicente Feola foram orientados pelo psicólogo João Carvalhaes a sorrir, embora tenha contraindicado Pelé e Garrincha por imaturidade e inteligência abaixo da média, respectivamente. Em 1962, o triunfo veio com um show à parte de Garrincha. Diversos cronistas defendem que só dois jogadores ganharam a Copa pelos seus países: o anjo das pernas tortas, como já citado, e Maradona pela Argentina, em 1986. Em 1970, a turbulência que envolveu demissão de João Saldanha, regime militar e a suposta “cegueira de Pelé” não se refletiu dentro de campo, que teve inovação tática com a marcação por zona, diferente do que se via na equipe italiana, que fez a final contra o Brasil e marcava por zona. A descrença, também presente em 1994, se transformou em desabafo de Dunga ao levantar a taça e xingar a imprensa, que o teria perseguido (em sua opinião). Em 2002, ajudas de arbitragem aconteceram, mas foi o talento acima da média de uma equipe com Cafu, Roberto Carlos, Ronaldinho, Rivaldo e Ronaldo que garantiu nosso último título. Nas últimas três Copas, a defesa, que era ponto fraco dos brasileiros, tem se destacado. Nas últimas três Copas do mundo (2006, 2010 e 2014 até oitavas de final), o Brasil levou 9 gols em 14 jogos. Só na Copa de 1998, a defesa foi vazada 10 vezes em 7 jogos.

*² Esse time não surpreende, não tem jogadas ensaiadas, depende do talento de Neymar e tem um técnico teimoso. O título da Copa das Confederações pode ter sido ruim. Para o jogo deste sábado (5), Scolari ensaia mudanças, como jogar com três zagueiros e tirar centroavante. A saída de Luiz Gustavo, suspenso pelo segundo cartão amarelo na partida contra o Chile, e o mau desempenho de Fred e Jô forçaram o treinador a refletir e até a pedir ajuda de jornalistas na Granja Comary.

*³ Os jornalistas que conversaram com Scolari na Granja Comary, segundo o portal Terra, foram Juca Kfouri (Uol / Folha de S. Paulo / ESPN Brasil), Paulo Vinicius Coelho (Folha de S. Paulo / ESPN Brasil), Fernando Fernandes (TV Bandeirantes), Osvaldo Pascoal (Fox Sports / Rádio Globo) e Luiz Antonio Prósperi (O Estado de S. Paulo).

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Somos tão cordiais assim?

Brasileiros vaiam o hino do Chile no Mineirão - Foto: Correio do Brasil
A Copa do Mundo, momento de alegria para o país pentacampeão, também desnuda nossas facetas. Mostra que o "homem cordial", descrito pelo historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda em "Raízes do Brasil", não passa de... mito.

As agressões seguidas de justificativas mostram muito do caráter de quem vaiou a presidente da República, Dilma Rousseff, no jogo de abertura do mundial, 12 de junho, e o hino do Chile, no último sábado (28). Os dois atos hostis têm muito em comum, trazem carga de ódio e vingança semelhantes aos linchamentos recorrentes deste ano e fazem parte da cultura do brasileiro, com segurança pública reforçada ou não. É a "institucionalização" do "olho por olho, dente por dente".

Na minha opinião, a alarmante taxa de homicídios no país não se dá apenas pela falta de policiais nas ruas ou defasagem das escolas públicas. Mesmo amando meu país e mesmo amando ser brasileiro, tenho que reconhecer, e estou mais convicto disso cada vez mais, que a sociedade brasileira é essencialmente violenta.

Obras como "Casa-Grande & Senzala", de Gilberto Freyre, e "O Futebol Explica o Brasil", de Marcos Guterman, resgatam histórias que ajudam a contextualizar os dias de hoje, mas não abordam, por exemplo, o que leva um homem a tirar a vida de outro após discussão por temas fúteis, que vão de som alto a ciúme.

Na Espanha é comum pessoas discutirem no trânsito e se resolverem na porrada. É uma sociedade violenta também. Mas a escassez de armas de fogo na terra do agora rei Filipe Vl, certamente, já salvou muitas vidas. A combinação entre temperamento explosivo e pólvora no Brasil não poderia dar em outro resultado a não ser em uma altíssima taxa de homicídios por 100 mil habitantes, 27,4%, o que coloca o país na sétima posição em um ranking com 95 países e regiões elaborado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais.

A situação de miséria de boa parte da população não é a única justificativa para o alto índice de assassinatos a meu ver. Por dois motivos. Em primeiro, porque países como Egito e Marrocos, que têm enormes contrastes sociais, possuem taxas de homicídio de 0,2% no mesmo estudo, números muito inferiores aos 27,4% do Brasil e que deixam esses países do norte da África bem atrás no ranking. Em segundo, porque os assassinatos no país não têm como autores apenas pessoas em situação de risco, e isso pode ser conferido nos noticiários todos os dias.

O comportamento habitual do brasileiro, evidentemente, não é o único fator que explica os homicídios, mas explica a violência de outras formas, seja na hostilidade a opositores ou falta de habilidade em resolver problemas pequenos. De repente, o "jeitinho brasileiro" não é à prova de rixas partidárias e rivalidades futebolísticas. Não somos tão cordiais assim.

sexta-feira, 20 de junho de 2014

Com uma semana, a Copa de 2014 já é minha favorita de todos os tempos


Eu na Fan Fest - Roberto Viana / Bocão News
Quem faz um evento esportivo ser bom não são as construtoras, tampouco as promessas de legado do governo ou animação da torcida. Essa fórmula não deu certo há 8 anos na Alemanha. Estádios impecáveis, mobilidade urbana já existente antes de a bola rolar e um monte de gente apaixonada por futebol que lotou os estádios não conseguiram fazer a última Copa realizada na Europa ser boa. Tampouco esses quesitos devem ser desprezados. Como seria bom se o mundial realizado esse ano no Brasil trouxesse melhoras sociais para a população, pois isso é mais importante nas nossas vidas que o futebol. Essa Copa, nem qualquer outro evento, vale o que foi gasto, nem concedido com empréstimos para lá de "camaradas". Incrível que arrodeado por tanto caos, dentro de campo, os melhores jogadores do planeta conseguem desempenhar tão bem seu papel, mesmo em fim de temporada, no calor em que a maioria deles não estão acostumados.
Instagram: @lucasfranco1

Essa Copa do Mundo, que completou uma semana ontem, se tivesse terminado já seria a melhor que eu vi. E vou mais longe. Pelo conhecimento que tenho de futebol, fruto de pesquisas, leituras e vídeos, arriscaria dizer que, ao menos para mim, é minha favorita de todos os tempos. Talvez por estar vivendo de perto essa atmosfera, alternando jornadas de trabalho com a de telespectador e participante da festa in loco. Uma coisa é viajar para fora, de férias, e curtir como um turista, ou viajar para o exterior com a missão de levar informações para o seu país. Outra bem diferente é não ter sua rotina tão modificada, continuar trabalhando no mesmo local que antes, sem deixar de cobrir política e cidades e de lambuja ir ao Pelourinho entrevistar torcedores em uma animada festa holandesa, ou se acotovelar em uma zona mista para entrevistar jogadores que irão enfrentar a seleção do seu país na semana seguinte, como foi no amistoso entre Croácia e Austrália, em Pituaçu.

Para sempre vou lembrar da partida in loco que vi, Espanha - 1 x 5 - Holanda. Van Persie e Robben entraram para a história da Fonte Nova com seus gols. Que gols. Que festa linda nas arquibancadas, promovida principalmente pelos holandeses, todos de laranja. A festa começa na andada para o Dique e só termina quando você chega em casa e assiste aqueles gols na televisão, para confirmar que o que viveu não foi sonho: você esteve ali, por mais fantástico que possa parecer.

E o que falar das anedotas? Schweinsteiger e Neuer cantando e pulando com o hino do Bahia em Porto Seguro, ingleses dançando Lepo Lepo... Ao final do mundial um livro precisa ser lançado só com episódios como esses, que deram uma atmosfera a essa Copa diferente da que se estava acostumada a ter. Sem falar dos japoneses, que limpam os estádios antes de sair.

Até o momento, só quatro partidas não tiveram pelo menos dois gols. E gols lindos, como o do australiano Tim Cahill contra a Holanda, Oscar contra a Croácia, dos holandeses Robben e Van Persie contra a Espanha, do uruguaio Suárez contra a Inglaterra... A Seleção Brasileira não têm rendido tanto, mas a Copa em si, dentro de campo, é um sucesso. Mas vale ressaltar: principalmente pelos jogadores.

sábado, 8 de março de 2014

Careta, quem é você?

escrito por Theo Almeida


Lidar com julgamento alheio não é novidade para o bloco Filhos de Gandhy. Mas para quem já foi perseguido por questões sociais-raciais-religiosas, é um tanto quanto ridículo enfrentar esse falso moralismo. E esse julgamento na hora mais inoportuna possível. No carnaval você pode ser quem você quiser. Homem vira mulher e a vida segue após quarta-feira de cinzas.


1. Secretaria de Segurança Pública de Salvador proíbe temas e batuques africanos.

 Fonte: DVD A Bahia do Afoxé Filhos de Gandhy


De uns anos pra cá, eu vinha achando que o carnaval de Salvador não tinha mais nada a me oferecer. ...2011, 2012, 2013. Tudo parecia “mais do mesmo”. Resolvi fugir dos “lugares comuns” do carnaval para um jovem de classe média (camarotes open bar/all inclusive, blocos e tudo mais que custe acima de R$ 250,00/dia).

Sempre tive curiosidade de sair no Filhos de Gandhy. Juntou “fome” com “vontade de comer”.  Hoje estou realizado pela experiência que o bloco me proporcionou. Sem dúvida, esse foi um dos carnavais que mais curti, e gastei RELATIVAMENTE pouco.

Nunca vi um bloco igual. Pais carregando seus filhos no cangote, portadores de Síndrome de Down, cadeirantes, estrangeiros, homossexuais e heterossexuais. Um variado degradê de tons de pele, do preto ao branco. Eu sou essa bagunça harmoniosa. Saí no Filhos de Gandhy para me sentir mais baiano, para satisfazer o meu “complexo de povo”.

Identidade. Pertencimento.

Saí no Filhos de Gandhy também por ser trabalhador. Quero pertencer a esse bloco criado por estivadores do Porto de Salvador. Fiz colar por colar para pôr meus sentimentos e meu trabalho neles. Um certo velho barbudo teorizava que o valor advém do trabalho. Eu acredito nisso.

Aprendi no Filhos de Gandhy que ainda há carnaval sem abadá e coreografias ensaiadas. Se for para deixar o português de lado, que se dê preferência ao iorubá ao invés do inglês. Não só de “open bar” e “all inclusive” é feito o carnaval.

AJAYÔ!

domingo, 16 de fevereiro de 2014

Where is the 'dendê' in my blood?

Ensaio do Ilê Aiyê - Foto: Lucas Franco
Uma das lembranças mais fortes do meu início de adolescência aconteceu em uma aula de história na 6ª série. Os resquícios de fantasia de infância davam lugar, gradativamente, a doses cavalares de mundo real. Quando meu professor, Sérgio Guerra, pediu para que levantassem a mão os alunos que já haviam visitado a Disney, algo em torno de um terço da classe (inclusive eu) ergueu os braços. Pensativo, Guerra ajeitou os óculos com o dedo indicador, franziu a testa e disparou "agora quero saber quem já foi ao Curuzu..."


Silêncio. Em seguida, burburinhos. Pior do que confirmar qualquer teoria do docente era nem saber onde ficava o Curuzu. Decerto o estádio do Paysandu não seria o alvo da sua pesquisa, ou melhor, experiência marxista. Fato que ninguém se manifestou. Com um misto entre sorriso triunfante e olhar melancólico de quem não pôde se surpreender positivamente, Guerra continuou. "Muitos de vocês foram a Disney, todos vocês ao menos já ouviram falar do parque de Mickey Mouse, mas nenhum de vocês sequer ouviu falar no Curuzu. Vocês são mais americanos do que baianos". 

Cada dia que eu busco desvendar minha própria cidade eu me lembro desse episódio. O colégio em que estudei, o Cândido Portinari, é um mundo à parte. Um mundo sem azeite de dendê e sem ritmos africanos. Um mundo que se estendia da sede da instituição, no Costa Azul, até o Aeroclube, baladas para menores de idade na Fashion Club, festas de quinze anos, praia de Piatã, jogos do Jocopa (Jogo dos Colégios Particulares) e mais meia dúzia de lugares clichês. Um mundo que foi meu até os 17 anos. Um mundo que eu apreciei enquanto por lá vivi. Um mundo sem São Lázaro, Rio Vermelho, Pelourinho e Cidade Baixa. Um mundo que não desejo ver meus filhos vivendo em função. Salvador é muito maior.

Cada um pode escolher o tipo de vida que quer levar. Os shopping centers e seus seguranças particulares dão lugar às praças públicas por desconfiança com a segurança pública. Mas as distâncias entre bairros nobres e subúrbio diminuem cada vez mais. E é da cabeça de quem se preocupa em proteger as fronteiras que surgem defesas à pena de morte, grupos de extermínio e criminalização dos rolezinhos.

Para compreender e amar algo, é preciso conhecer. Por um mundo com menos danone e mais dendê.

*Curuzu é onde fica localizada a sede do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro da cidade e símbolo da resistência negra.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Não fale bem, nem fale mal...

Foto: Ricardo Zerrener - Divulgação

O bairrismo, definitivamente, colabora para as coisas continuarem do jeito que estão, como opinei na última postagem. Sua índole conformista não é só instrumento de defesa. Também é usado para atacar críticos que muitas vezes, por tanto gostarem de um lugar, colocam o dedo na ferida para provocarem reflexão. Mas o outro extremo tampouco me agrada.

Eu não li nenhuma pesquisa a respeito, mas acredito que os brasileiros herdaram um péssimo hábito dos portugueses: o de valorizar o que vem de fora em detrimento do que é local. Em conversa com um vendedor de produtos de futebol no aeroporto de Lisboa, perguntei se Cristiano Ronaldo é admirado em seu país, afinal, o cara é uma febre em todos os lugares que visitei. A resposta que ouvi me surpreendeu. O cara que viria a ser o melhor jogador do mundo na temporada sofre duras críticas dos conterrâneos, assim como cientistas lusos só ganham reconhecimento nacional quando vendem suas ideias no exterior.



Isso explica porque elogios à ex-colônia da terra de Camões podem repercutir tão negativamente quanto as críticas mais duras (e muitas vezes injustas). Quando um americano escreveu uma lista com 20 motivos pelos quais ele odeia o Brasil, as redes sociais se dividiram entre os que disseram reconhecer os defeitos e os que se sentiram ofendidos. No entanto, quando um jornal do mesmo país do "crítico" enumera uma lista com 12 lições que os brasileiros dão ao mundo, a repercussão negativa foi ainda maior, com comentários como "quem escreveu isso estava drogado" ou "o governo federal pagou quanto para esse jornal?".

As duas listas trazem distorções e não percorreram tantas cidades para tirarem conclusões de uma nação de 200 milhões de habitantes. Não somos o inferno retratado pelo cinema local, tampouco a terra da alegria, como agências de turismo e comerciais de TV tentam empurrar goela abaixo. As pessoas não necessariamente são mais felizes porque vivem aqui, embora a felicidade dependa muito da maneira como o ser humano se adapte ao seu ambiente. A construção de um novo país depende do seu povo, embora as mazelas atuais em todo o continente sul-americano sejam históricas. Mas enquanto isso, o brasileiro vai preferir que falem bem ou falem mal de seu país? Ou que não falem nada?