domingo, 25 de junho de 2017

Sem aurora e orvalho: a tecnologia nos ilude e nos mata

“Sob a aurora, eu, meus pensamentos e esse cheirinho de orvalho começamos bem o dia. Começamos, pois não me separo das minhas ideias. Tampouco desse cheirinho de orvalho. Será um lindo dia, como todos os outros!” 


Aurora Boreal na Finlândia / Foto: Nellim, Wilderness Lodges & Safaris 



Perdão, caro leitor. Se você quiser ler um artigo otimista, que te coloque para cima no começo da manhã, te recomendo não ir até o final. Aqui, vou falar sem floreio os quão floreados são muitos dos ideais de futuro. 


Não há nada de romântico nas mudanças drásticas em que o mundo tem passado. Muitas delas provocadas pela maximização de ganhos de quem tanto já tem. Essa é a tendência dos novos tempos.

Lembra dos Jetsons e Futurama?


Episódio de Futurama. Imagem: Divulgação



Então. Nossas gerações. A minha. A sua. As de nossos pais e avós. Todas elas foram acostumadas a pensar no futuro priorizando o viés da tecnologia. “Será que carros vão voar no futuro?”. Duvido muito, por vários motivos.


Em primeiro, que a nova discussão do século em muitos países, felizmente, é a conscientização acerca do uso do transporte público coletivo. Nem tudo está perdido. Helsinque, a capital da Finlândia, pode não ter carros particulares a partir de 2025, por exemplo. No lugar de carros particulares, um novo modelo irá integrar ônibus, metrô, trem, bicicleta e táxi.


Boas notícias à parte, vamos falar do que está tão próximo da gente. Foi um erro pensarmos em futuro priorizando o viés dos avanços tecnológicos e científicos. Talvez tenha sido um otimismo tonto acreditar que depois de tanta luta, os direitos trabalhistas seriam ampliados ou na pior das hipóteses, mantidos.


Vão faltar carros voadores no futuro. Como podem também faltar empregos. Teletransporte? Não surgirá antes dos adventos de mais e mais aplicativos que terceirizarão funções até então executadas por pessoas que têm garantias trabalhistas. 


Justamente por terem garantias, essas pessoas que podem ser afetadas cobrarão mais do que “colaboradores de aplicativos”. Cobrarão? Isso já está acontecendo e tudo parece normal!


Se você tivesse visto a ideia do Uber em um desenho animado futurista, não ficaria assustado? Como pode, pessoas sem nenhum vínculo com empresa ou instituição cobrar para levar passageiros em seu próprio carro e pagar percentual do serviço para um aplicativo estrangeiro?


Os Jetsons / Imagem: Divulgação



Você não se assustaria, há 15 anos, se soubesse que sua locadora deixaria de existir porque uma provedora passaria a te fornecer um acervo de mais de 10 prateleiras de filmes, séries e shows? 


Cadê a magia de chegar na locadora e conversar com a moça que conhece os clássicos e as mais novas produções que concorreram ao Oscar? Para em seguida, na própria locadora, comprar uma revista SET (que não existe mais), uns chocolates e preparar o pacote de três filmes para assistir no fim de semana?


Não se trata de nostalgia. Novas tecnologias mudam drasticamente estilos de vida e acabam com a fonte de renda de muita gente. 


“Sob a aurora, eu, meus pensamentos e esse cheirinho de orvalho começamos bem o dia. Começamos, pois não me separo das minhas ideias. Tampouco desse cheirinho de orvalho. Será um lindo dia, como todos os outros!”


Se você anda romântico, não continue esse texto! Pare agora mesmo! Aviso dado. Bom, se você acha que a tecnologia tem facilitado sua vida, me diga o que você prefere:



  • Gastar menos para voltar de um bar de madrugada, assistir o triplo de filmes que assistia antes por apenas R$ 20 e estar desempregado.



  • Lutar para que alvará de taxistas não seja abusivo, exigir serviços melhores, ter mais desculpas para sair de casa, além de estar trabalhando com carteira assinada, como quase todas as pessoas ao seu redor?

Foto: Divulgação



Não se iluda: os baixos preços convidativos se dão por fruto da degradação das relações de trabalho e extinção de alguns serviços. Se ficou ruim para quem trabalha ou é dono da locadora, ficará ruim para você.


Isso porque quem mais ganha, afinal, não é você. É quem paga menos e por isso pode cobrar menos para ganhar mais. Quando o intuito da tecnologia é maximizar lucros ao invés de melhorar a qualidade de vida não apenas dos que detêm domínio sobre a tecnologia, deveria ser a hora de parar com esses avanços.


Mas esses avanços tecnológicos não vão parar. Não vão parar porque há quem esteja enfeitiçado com a imagem da aurora e o cheirinho do orvalho, que parecem formar o cenário dos novos tempos. Mas não é. Não há nada romântico com tudo isso que está acontecendo.


Como o Brasil não é a Finlândia...



Se Helsinque planeja não ter carros particulares a partir de 2025, as cidades brasileiras estão mais próximas de criar seus próprios veículos voadores. Desses que quase decolam, tamanha velocidade imposta pelos seus condutores.


Um dos possíveis candidatos na próxima eleição presidencial, o prefeito de São Paulo, João Doria, revogou medida de limite de velocidade nas marginais tomada pelo seu antecessor, Fernando Haddad.


O resultado disso foi, nos primeiros meses de mandato, um aumento de 51% em acidentes na comparação com o mesmo período do ano anterior, segundo informações da Polícia Militar de São Paulo. Não adianta falar de advento tecnológico sem falar de política. De avanço em bem-estar sem reconhecermos que o “novo” vem vestido de velho. Que o “Jetson”, na verdade, não chega a ser um “Flinstone”. Estaria mais para um personagem de “A Família Dinossauro”.


"Não é a mamãe" / Foto: Divulgação



Que a aurora, na verdade, só pode ser vista através de uma TV de LCD. Que o cheiro de orvalho, na verdade, não é cheiro de orvalho. Seu olfato está seriamente comprometido e te ilude.


Quanto mais a tecnologia servir de instrumento para iludir os que dela serão substituídos, mais ela cresce com esse propósito. Quem deveria coordenar a tecnologia somos nós, que não a detemos. Brasileiros e finlandeses. Ciclistas de São Paulo e usuários de ônibus de Helsinque. Se não deu para entrar na era dos Jetsons, ainda nos resta tempo de não virar o episódio de Simpsons do vídeo abaixo.


sábado, 11 de março de 2017

Cinema, política e Bahia: entrevista com Pablo Villaça

Pablo ministrou o curso de "Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica" em Salvador, do dia 6 ao 10 de março 
No segundo semestre de 2014, o Brasil se polarizou de uma maneira que eu ainda não havia visto. Na época, eu morava no Chile, mas mesmo distante, era possível ver, pelo Facebook, as inúmeras trocas de ofensas entre pessoas conhecidas por decorrência de divergências ideológicas na medida em que as eleições se aproximavam. Nesse momento, um texto apareceu na minha timeline, compartilhado por um de meus contatos, e me chamou muito a atenção não só pelo posicionamento, parecido ao meu, mas pela lucidez. Foi assim que ouvi falar pela primeira vez no nome do crítico de cinema mineiro Pablo Villaça, de 42 anos, diretor-fundador do "Cinema em Cena", site criado em 1997. 

Entrevistei Pablo no auditório do IRDEB, na Federação, onde aconteceu o curso de “Teoria, Linguagem e Crítica Cinematográfica”, do qual eu fui um dos quase 100 alunos. Recomendo a todos que gostam de cinema e queiram se aprofundar na sétima arte. 

Documentário “Axé”, programa “Escola sem Partido”, o começo de sua carreira como crítico, perda de leitores por falar de política e dicas para trabalhar com cinema são alguns dos temas desta entrevista, que segue abaixo em texto e áudio (o player está no final do texto).    


Quais são as dificuldades de se fazer crítica [cinematográfica] no Brasil em comparação a outros países?

Acho que fazer crítica de arte em qualquer país do mundo é complicado. Viver disso é complicado. Não é algo que seja comumente uma fonte de renda confiável, estável. Então do ponto de vista financeiro, do ponto de vista profissional, sempre dedicar-se à crítica de arte, não só de cinema, é sempre um risco que se toma. Agora, no Brasil existem algumas coisas adicionais, alguns problemas adicionais, como dificuldade de acesso a certos filmes, o próprio desinteresse das distribuidoras em investir em publicidade em sites que se dediquem à crítica, e não só divulgação dos projetos que eles estão vendendo. Mas eu acho que isso é comum em qualquer país. Qualquer coisa relacionada à arte envolve um risco imenso quando você quer transformar aquilo em uma fonte de renda para poder viver. 

Quando surgiu a ideia de ser crítico e quais críticos te influenciaram?

Eu sempre gostei de cinema e sempre estudei cinema. Eu comecei a estudar cinema de uma maneira autodidata com 14 ou 15 anos, quando eu ganhei um livro da Pauline Kael chamado “Criando Kane”, que é um dos livros seminais em termos de discussão cinematográfica. Pauline Kael sempre foi uma escritora excepcional. Na adolescência eu ganhei um CD, chamado  “CD Mania”, e os filmes que tinham nesse CD vinham com críticas, então eu criei o hábito de sempre ao ver um filme, botava esse CD e lia a crítica do Roger Ebert, que eram as críticas que vinham no CD. Então Roger [Ebert] me mostrou na prática uma maneira completamente nova de ver cinema. Quando eu já estava na faculdade, mas de outra coisa [medicina], eu criei um site, não, antes disso, na pré-internet no Brasil tinha um negócio chamado BBS [bulletin board system], que você conecta no computador de um cara, através do computador dele você acessava uma rede de mensagens, baixava arquivo ou participava de chat. Eu comecei a criar a área de cinema, Belo Horizonte tinha sete BBS, eu criei a área de cinema de seis delas. Basicamente significava o seguinte, eu pegava o jornal e digitava a programação de cinema durante a semana, via os filmes e dava uma cotaçãozinha e escrevia um pequeno parágrafo sobre isso. Foi indo assim. Aí eu comecei a ter mais interesse em escrever, e aí veio a internet e eu criei um site para colocar as críticas que já tinha escrito para outros espaços. E de repente eu vi que tinha muito mais prazer em fazer isso do que na faculdade. 
Livro de Pauline Kael

Sua página de Facebook tem mais de 250 mil seguidores. Além de cinema, você costuma falar de política. Você já temeu perder seguidores?

Não precisei temer não, eu perdi sem precisar temer. Antes de eu sequer pensar que isso poderia acontecer eu já tinha perdido. Eu sempre falei sobre política, tanto escrevendo exclusivamente sobre política como discutir elementos políticos em críticas de filmes que permitiam esse tipo de discussão. Tem textos meus que são de 1998, 1999, de filmes que tinham uma temática política, e eu discuto política dessa maneira. Com o passar do tempo, com Facebook, que oferecia um espaço que eu poderia falar sobre política apenas, porque eu não ia falar de política no Cinema em Cena, para não misturar as coisas, eu comecei a escrever como cidadão, eu me expresso como cidadão. Mas foi crescendo, ganhando uma relevância que eu realmente não esperava, e até hoje eu não entendo o porquê. 

Eu conheci a página do Facebook durante as eleições de 2014.

E você não conhecia o Cinema em Cena?

Ainda não. Mas hoje sou colaborador.

Muito obrigado, bom gosto. Mas você conheceu pela política?

Foi, pela política.

Quanto tempo você levou para descobrir que eu escrevia sobre cinema?

Foi no mesmo dia. Eu vi a página, achei bem feito o texto e fui procurar saber sobre você e vi que você era crítico de cinema.

Mas muita gente faz o caminho inverso. Me conhecia pelo Cinema em Cena, me conhecia por crítica, e aí quando comecei a escrever sobre política, a pessoa leu e falou assim “que porra esse comunista, canalha”, e pararam de ler. Muitos fizeram questão de expressar isso. Um me marcou muito, era adulto, falou “hoje eu tenho 28 anos, eu te leio desde que eu tinha 14, mas não te lerei mais”. Enfim, acho uma bobagem, uma perda de tempo e uma falta de discernimento grande você não conseguir separar as duas coisas. Você não gosta da posição política do cara como cidadão e vai deixar de acompanhar o trabalho que apreciava como crítico, eu acho uma bobagem. Mas o fato é que eu perdi, e quando você vê o gráfico de acessos ao Cinema em Cena, de 2014 para cá, eu perdi no mínimo, falando conservadoramente, um terço dos leitores.  

Mas não ganhou?

Durante o curso / Foto: Lucas Franco
Ganhei, mas perdi mais do que ganhei. Isso pelo acesso do Cinema em Cena. Mas não posso nem dizer que perdi mais do que ganhei, eu perdi, e os que eu ganhei não necessariamente eu ganhei como leitores do site. Eu estou falando do Cinema em Cena. Então eu posso ter conseguido muitos novos leitores na página do Facebook, que é um negócio que sinceramente, eu fico feliz e tal, mas profissionalmente não faz diferença porque eu não vivo daquilo, eu vivo do Cinema em Cena. E desses leitores que eu ganhei, a maior parte não entra no Cinema em Cena, porque o gráfico de acessos ao Cinema em Cena, de 2014 para cá, foi um gráfico... Agora não, nos últimos quatro meses começou a crescer bem. Não sei o que aconteceu, se eu fiquei mais simpático, se todo mundo começou a separar as coisas melhor ou se de repente teve um boom na população de comunistas no Brasil, não sei o que aconteceu. Começou a aumentar [nos últimos quatro meses], mas que eu perdi muito leitor, eu perdi. Agora, se eu imaginasse que isso iria acontecer, eu escreveria do mesmo jeito sobre política? Sem dúvida nenhuma. Eu não posso deixar de me manifestar como cidadão por medo de que isso vai gerar algum tipo de perseguição ou macarthismo à brasileira. Acho uma pena, mas não posso fazer nada a respeito.

Boa parte da direita fala sobre doutrinação nas escolas, que seriam espaços em que os professores teriam que ser neutros. Na sua opinião, qual a importância de professores, críticos e a sociedade em geral se posicionarem sem medo?

Se posicionar sem medo é fundamental, você tem que se posicionar sem medo sobre tudo. Você não pode ter medo de se expressar, não pode ter medo de ter uma ideia, uma ideologia, expressar uma opinião, um ponto de vista. Você cita basicamente a “Escola Sem Partido”, que é de uma estupidez imensa. De uma estupidez e de uma posição cínica, porque o que eles estão dizendo não é “nós queremos escola sem partido”. O que eles estão dizendo é “nós queremos uma escola sem esquerda”, porque essa é a diferença. Quando eles falam “ah, o filme tem ideologia”, ou “que a escola tem ideologia”, ou “que os artistas têm ideologia”, o que eles estão querendo dizer é: eles são de esquerda. Porque se eles fossem de direita, seria normal. Se você for de direita, é a postura padrão, tudo bem, não tem uma postura diferente. Agora quando eles falam que não querem política na escola, o que eles estão dizendo é “nós não queremos nenhum tipo de pensamento de esquerda na escola”, e quando eles falam de pensamento de esquerda, eles estão falando de pensamento crítico, basicamente. É você pensar em ativismo social, é você pensar em direitos humanos, é você pensar em direitos de minorias, é você pensar em políticas de inclusão social, é isso que eles não gostam. Não é que eu ache que um professor de matemática deve parar a aula de matemática para começar a falar sobre política. Agora, a escola é um lugar de ensinamento, de despertar o pensamento crítico no aluno. Um professor não pode se podar. Por exemplo, como um professor de história vai dar aula sem abordar política? Como um professor de geografia, principalmente quando você fala de geografia do ponto de vista de política, vai deixar de falar? Na literatura, como você vai discutir grandes obras da literatura sem falar? Então a política faz parte da experiência humana. Querer tirar a política da escola, ou das artes, primeiro que é um esforço fútil, não tem como se fazer isso. Enquanto houver humanidade vai haver política. Em segundo, é cínico, porque eles não querem tirar a política da escola, eles querem eliminar um tipo de espectro ideológico da escola. 

Você já ministrou o curso em Salvador outras vezes. Como você enxerga o cinema baiano?

Na verdade, eu sempre vim a Salvador desde criança, eu tenho parentes aqui. Sempre gostei muito da cidade e do povo em si. Eu me sinto muito à vontade, não só na Bahia. Para ser bem sincero, eu me sinto muito à vontade no Nordeste. Todas as vezes em que eu venho, a qualquer estado do Nordeste, eu me sinto sempre muito bem recebido. Sempre fico muito impressionado com a gentileza do povo. É uma gentileza que você não vê em outros estados do país, não vê mesmo, ao contrário, em certos estados você sente uma hostilidade na rua. Então eu me sinto em casa no Nordeste. O cinema nordestino inclusive hoje é um dos cinemas mais ricos do Brasil. Porque o Brasil tem polos cinematográficos em todos os seus cantos. Vamos chamar de polo, embora isso tenha a ver com indústria e o cinema brasileiro não é um cinema de indústria, mas você tem centros de criação, centro de geração de cinema no Rio Grande do Sul, em São Paulo, Rio, Minas Gerais obviamente, e no Nordeste também muito. Amazonas, Norte, menos. Porque eu acho que inclusive faltam recursos financeiros para estimular.
Pôster do amazonense "Antes o Tempo Não Acabava"
Inclusive é importantíssimo que você expanda, porque quanto mais estados, quanto mais regiões se manifestarem no cinema, maior é a nossa diversidade de temáticas. Tem um filme amazonense que eu vi ano passado, que foi selecionado no Festival de Berlim, “Antes o Tempo Não Acabava”, que é de uma sensibilidade ímpar, contando a história de um menino de uma tribo indígena que vai se descobrindo gay. Imagina que tipo de história inesperada, de uma descoberta da homossexualidade por parte de um índio. Como isso se reflete na sua família, com costumes completamente diferentes, uma ótica completamente diferente, então é importante isso, você ter cinema no Amazonas, você ter cinema no Acre, e no Nordeste a gente tem um polo um pouco mais estabelecido, principalmente Pernambuco, que tem grandes cineastas, produzindo muito bom cinema. Eu tenho imensa admiração não só pelo espírito criativo do Nordeste, mas eu estava falando sobre a Bahia especificamente. Eu fui ver um documentário, que é daqui inclusive, o “Axé”.

Você gostou?

Gostei muito do filme. Gostei muito. O filme tem alguns probleminhas de ordem estrutural, cronologicamente às vezes ele é um pouco confuso, mas é um filme que de modo geral é bem didático, abrangente, e o que eu mais gosto em um documentário, que ele é ao mesmo tempo interessante, divertido e traz informações que são relevantes e que não são tão comuns assim. Eu por exemplo até comentei isso depois, que vendo “Axé” eu fui confrontado pela minha própria ignorância em relação ao gênero. Não só a ignorância, em relação ao preconceito mesmo. Eu tinha preconceitos com relação ao axé que, vendo o documentário, vi que é uma coisa historicamente riquíssima, culturalmente riquíssima e que eu desconhecia. E o que eu achei bacana é que eu fui assistir a sessão das 19h, e a sessão estava esgotada, eu não me lembro de nenhuma vez em que eu tenha ido a um cinema de shopping ver um documentário em que a sessão estivesse esgotada. Não consigo me lembrar. E aí eu comprei a sessão das 22h, e a sessão estava lotada, sessão das 22h, no meio da semana, um documentário. Eu fiquei fascinado por isso. E quando terminou o filme, eu achei legal que duas pessoas começaram a dançar em frente à tela durante os créditos. O que eu senti é uma coisa que eu sinto muito na Bahia, e que de novo acho que falta ao restante do país: orgulho da própria cultura, orgulho da própria história. O brasileiro tem sido muito vira-lata, acha que o que vem de fora é lindo e o que a gente produz é lixo, é pobre, é medíocre, e não é isso. Nossa cultura é riquíssima e eu vejo isso muito no Nordeste. 




Teve um filme, “Bahêa Minha Vida”, não sei se você viu.

Não vi, mas eu sei.

A torcida toda foi com camisa, transformou o cinema em um estádio.

Mas o foco desse filme é...

“Bahêa Minha Vida” é um filme sobre o Bahia, sobre a história do time...

Mas aí fica um pouco à parte porque envolve outra paixão louca do brasileiro que é o futebol. Tem um filme mineiro que se chama “O Dia do Galo”, que é sobre a final da Libertadores que o Atlético jogou, que é um time que eu não torço, meu time é o Cruzeiro, que é infinitamente melhor. Mas vendo “O Dia do Galo”, embora cruzeirense, que é o maior rival do Atlético, eu fiquei encantadíssimo com o filme justamente pela paixão que ele ilustra sobre torcida. Então “Bahêa Minha Vida” é um pouco diferente nesse sentido.

O que se aprende nos cursos de cinema daqui?

O objetivo é para quem quer fazer cinema, para quem quer ver cinema de uma maneira mais abrangente e para quem ama cinema. O objetivo do curso é expandir o olhar do espectador. Se junto com isso vier uma vontade de fazer cinema, ótimo. Mas o objetivo principal do curso é de certa maneira mostrar para o aluno, para o espectador e para o cinéfilo, que existe uma linguagem muito mais ampla e complexa do que o público costuma perceber. Que todas as emoções que você sente ao longo do filme não são fruto de uma reviravolta do roteiro ou de uma lágrima que o ator derrama em um momento certo, mas de toda uma lógica narrativa que envolve a montagem, que envolve a fotografia, o desenho de som, e o objetivo é esse, mostrar esses outros elementos. Isso nesse primeiro curso, pois têm dois outros. O segundo curso, “A Arte do Filme”, é um pouco mais técnico, então eu vou abordar algumas questões que não são apenas para quem quer fazer cinema, mas tem questões mais técnicas, e o terceiro curso é sobre cinema de um modo geral, mas a entrada pelo cinema pelo “O Poderoso Chefão”.

Marlon Brando em "O Poderoso Chefão" / Imagem: Divulgação
Só um ou a trilogia?

Só um. Eu fico uma semana discutindo o primeiro filme. Poderia fazer sobre qualquer um dos três, porque são igualmente sensacionais, eu sou fã dos três igualmente. Mas por uma questão de cronologia, eu começo do um.

É também no primeiro filme que tem atores como...

Marlon Brando

Marlon Brando por exemplo não está nos outros dois...

Mas em compensação tem o Robert De Niro no segundo e não tem no primeiro, no terceiro filme tem o Eli Wallach, que é outro ator fantástico, que não está no primeiro e no segundo. Não é nem por isso. Quer dizer, ao mesmo tempo também é, porque para mim o Marlon Brando é o maior ator da história do cinema, então se dá para falar em “O Poderoso Chefão” e também sobre Marlon Brando, eu uno duas paixões. 

O que você sugere aos jovens que querem fazer carreira no cinema, seja como crítico, cineasta, levando em consideração... Eu sou jornalista, quando algumas pessoas me perguntam sobre como é ser jornalista, eu digo “pense bem a sua paixão”...

Engraçado você falar isso. Bom, meu conselho é o seguinte. Eu tenho um primo, que na verdade é primo-sobrinho, porque é bem mais novo, e ele veio conversar comigo agora, durante o carnaval. Ele é daqui da Bahia inclusive. Ele falou que tinha vontade de fazer cinema e se eu achava que ele deveria ou que era promissor financeiramente. Eu falei, financeiramente promissor, trabalhar com arte nunca é. Nunca, em qualquer ramo da arte. Se você consegue se enxergar fazendo outra coisa sendo feliz, faça outra coisa. Porque cinema é um ramo complicado, é muito fechado, tem muita panelinha. Mesmo que você faça parte da panelinha, financeiramente é complicado e vai ficar cada vez mais complicado porque agora a gente tem um governo que que não estimula, não estimula não, sabota a cultura, sabota a produção cultural, que enxerga o artista como inimigo, enxerga a cultura como inimiga, então a tendência é ficar pior. Agora, se você só se enxerga sendo feliz fazendo cinema, dane-se qualquer tipo de pessimismo financeiro e vá fazer cinema. Encontre um modo de viver daquilo. O que eu recomendo é estudar muita teoria e ver muito filme e viver realmente a arte. E viver muito. Porque a arte é fruto das experiências de vida de cada um.

Pablo, muito obrigado.

Valeu.


quarta-feira, 1 de março de 2017

O que Recife e Olinda me ensinaram

Marco Zero lotado na sexta-feira (24 de fevereiro de 2017), abertura do carnaval de Recife
Ir ao carnaval, ou melhor, ir aos carnavais de Recife e Olinda eram um sonho para mim. Um só sonho, no singular. Tão singular como as duas cidades pernambucanas. Mas afinal, as festas momescas em Pernambuco são melhores do que em Salvador? Vou te contar uma coisa.

O sentimento de pertencimento é muito importante. Sentir-se local, filho de determinada cidade, região ou continente. Me lembro que no Chile, país em que morei por dois anos, era comum ouvir músicas de diversos países hispanohablantes, e chamava a atenção dos chilenos que eu, nascido em um país do mesmo continente, não conhecesse até as músicas mais famosas da Argentina, Colômbia, México, Cuba e Porto Rico. A língua é uma barreira invisível. Diferente do muro pretendido por Trump para separar Estados Unidos e México, há uma parede invisível que impede os brasileiros de conhecerem Celia Cruz, Manuel Mijares e Carlos Vives. No Chile, eu aprendi a ser latino-americano, e não apenas brasileiro. Em Recife e Olinda, eu aprendi a ser nordestino, e não apenas baiano. 

Conheci Almir Rouche e Marrom Brasileiro, lendas pernambucanas pouco conhecidas fora do estado. Era impressionante a conexão entre artista e público no Marco Zero, como todos sabiam cantar, com emoção, músicas antigas que eu nunca havia escutado. Após repetidas execuções dos clássicos, eu já fazia coro ao refrão "Ai que calor, ô, ô, ai que calor, ô, ô, ai que calor, ô, ô, ô, ô, ô... ô, ô", como um pernambucano a mais na multidão.



Sou nordestino, logo, essa música também é minha. E a guitarra de Armandinho, além de baiana, é pernambucana. Porque somos todos da mesma região, diversificada, mas com muito mais semelhanças entre os estados do que se costuma pensar. E é por isso que não existe uma resposta à pergunta "qual o melhor carnaval: Recife, Olinda ou Salvador?". Ambos são maravilhosos, únicos, e ao mesmo tempo fazem parte do mesmo todo. É uma festa só, de uma região que poderia fazer mais trocas entre si.

"Eu Acho é Pouco", um dos blocos mais famosos de Olinda, no sábado (25)


Não é verdade que "música baiana e referências à Bahia não entram no carnaval de Pernambuco". "Cometa Mambembe", consagrada nas vozes do cearense Alcymar Monteiro e da paraibana Elba Ramalho e tão tocada no Galo da Madrugada, foi composta por um baiano, Carlos Pitta. Já "Banho de Cheiro", homenagem à Bahia também emplacada por Elba Ramalho, foi escrita por Carlos Fernando, que nasceu em Caruaru, morou a maior parte de sua vida em Recife, Olinda e Rio de Janeiro e é considerado um dos maiores responsáveis por unir frevo e MPB, ajudando a expandir referências ao Senhor do Bonfim, Filhos de Gandhy e Boca do Rio.






Nada supera o que presenciei no show de Otto na segunda-feira (27), no Pátio São Pedro, no Recife Antigo. O local parece a Praça Tereza Batista, no Pelourinho, em Salvador, e a emoção do público contagiava. Em todos os momentos do show o artista, nascido no interior de Pernambuco, falava da emoção de estar na cidade que o acolheu e da qual se sente pertencente, de se sentir o espelho do público e de sentir que o público é o seu espelho, para em seguida dizer "mas vamos falar de Salvador agora" e emendar "Janaína", música que fala da festa de Iemanjá, que acontece no dia dois de fevereiro, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador.




Não é a única música de Otto que cita Salvador, mas me senti representado pela citação à minha cidade antes de ele começar a cantar uma música que fala da minha cidade em pleno carnaval de Recife, mesmo em meio a um público que parecia ser predominantemente local. E fico feliz que vários recifenses se sintam representados pela canção como eu me senti representado pelas músicas pernambucanas que ouvi.

Se no Chile eu conheci muitas músicas que me fizeram me sentir mais latino-americano, independentemente das diferenças que existem entre os países do continente, em Recife constatei que nenhuma diferença deve ser maior do que o sentimento de união em torno de uma só causa, o carnaval. Uma festa só, em várias cidades. Assim deveria ser o mundo: multicultural e único. Como as músicas de Otto.

Em Bora Tao
Em Bangladesh Goa
Na China Mao
Free Tibet para mim é pessoal
Lavanda ofereço orixá
Luanda, Havana e Salvador
Na lama do Recife sou xangô
Umbanda, caranguejo, salta a dor
Que idade banha ele
Banho de mar
Que idade banha ele
Iemanjá

quinta-feira, 5 de janeiro de 2017

China, dinheiro e futebol: uma nefasta combinação

Foto: CCTV
O mais popular esporte do planeta corre perigo. O futebol, como conhecemos hoje no Brasil com a pronúncia de “futibóu” e que por essas bandas já se chamou “football”, vai precisar se reinventar muito para sobreviver às novas investidas da China. Não que este seja o primeiro desafio. A descrença no jogo já havia sido repercutida em 1920 pelo escritor Graciliano Ramos, que em artigo ao jornal alagoano “O Índio” cravou que “estrangeirices não entram facilmente na terra do espinho. O futebol, o boxe, o turfe [corrida de cavalos], nada pega”. Pegou e “abrasileirou-se”. Nos anos 2010, é justamente a versão brasileira do jogo que tem chamado a atenção do outro lado do mundo. Era preferível a descrença do Século XX à obsessiva “admiração” dos orientais. 

Não é novidade que grandes clubes de outros continentes contratem estrelas sul-americanas. O que é novidade é a saída até de jogadores medianos por cifras inimagináveis, o que tem enfraquecido as ligas do continente e as disputas intercontinentais de clubes. O êxodo para a Europa pelo menos agraciava o fã do esporte com a formação de “dream teams” multiétnicos, o que ao longo do tempo deixou inúmeros legados. Do Real Madrid de Puskas e Di Stefano ao Barcelona de Messi, Suárez e Neymar. No entanto, quando os leilões por jogadores não deixam legado algum, o sinal de alerta deve ser acionado no mundo da bola.

Para entender o quão nefasta é a combinação China, dinheiro e futebol, é preciso entender o tamanho do país asiático no cenário. Participante de apenas uma edição de Copa do Mundo, em 2002 (três derrotas, 9 gols sofridos e nenhum marcado), e sem títulos em torneios continentais com a seleção principal, seus clubes venceram apenas três das 35 edições de Liga dos Campeões Asiáticos disputadas. Dos 14 jogadores que estiveram em campo no último jogo da seleção chinesa, em novembro do ano passado, empate sem gols e dentro de casa contra o Catar, pelas eliminatórias da Copa, apenas um atuava fora do país, o atacante Zhang Yuning, reserva do holandês Vitesse (nem sempre é relacionado para jogar). O Vitesse, que tem parceria com o Chelsea desde 2010, é o oitavo colocado na modesta Eredivisie, que conta com 18 times. Dezessete rodadas já foram disputadas e Yuning marcou apenas um gol.

Treinada pelo italiano Marcello Lippi (campeão europeu e mundial com a Juventus em 1995 e da Copa do Mundo com a Itália em 2006), a China é a lanterna do Grupo 1 das eliminatórias, com dois pontos em cinco jogos disputados, e está praticamente fora do mundial de 2018, na Rússia. Será muito difícil que as milionárias transações deixem algum legado se o nível dos jogadores locais continuar tão baixo, já que só é permitida a participação de quatro estrangeiros por equipe. Do ponto de vista tático, tampouco há boas perspectivas. Os treinadores, embora vitoriosos em outras épocas,  há muito tempo não fazem um bom trabalho, a exemplo de Luxemburgo (demitido em 2016 do Tianjin Quanjian, da segunda divisão), Scolari (após parcela de responsabilidade em rebaixamento do Palmeiras em 2012 e nos 7 a 1 do Brasil na Copa de 2014, foi contratado pelo Guangzhou Evergrande, onde está até hoje) e Mano Menezes (demitido esse ano do Shandong Luneng, o treinador perdeu prestígio após pedido de demissão inesperado do Flamengo em 2013, mas atualmente tenta juntar os cacos no Cruzeiro). 

A Chinese Super League foi a sexta liga com maior média de público do planeta em 2015, com 22.580 torcedores. A expectativa dos dirigentes é que a liga local se torne uma “Premier League Asiática”. Falta muito. As ligas japonesa e coreana contratam brasileiros de nível técnico mediano desde os anos 1990. Países do Oriente Médio também não poupam esforços. Não é coincidência que os clubes brasileiros precisem aumentar os preços dos seus produtos licenciados e ingressos e ainda assim passem por situação financeira difícil. O futebol, que chegou ao Brasil como um esporte de elite, se popularizou e em momento de inflacionamento de mercado deixa de encantar e de atrair as multidões. Está caro ir ao estádio e não é fácil para os clubes manterem a base com tamanho assédio da China, que no início de 2016 desfalcou o detentor do título brasileiro Corinthians com a transferência de quatro dos seus titulares. É hora de o futebol brasileiro se reinventar novamente e usar suas armas contra as investidas orientais. Se é que a China também não vai comprar as armas.