domingo, 25 de junho de 2017

Sem aurora e orvalho: a tecnologia nos ilude e nos mata

“Sob a aurora, eu, meus pensamentos e esse cheirinho de orvalho começamos bem o dia. Começamos, pois não me separo das minhas ideias. Tampouco desse cheirinho de orvalho. Será um lindo dia, como todos os outros!” 


Aurora Boreal na Finlândia / Foto: Nellim, Wilderness Lodges & Safaris 



Perdão, caro leitor. Se você quiser ler um artigo otimista, que te coloque para cima no começo da manhã, te recomendo não ir até o final. Aqui, vou falar sem floreio os quão floreados são muitos dos ideais de futuro. 


Não há nada de romântico nas mudanças drásticas em que o mundo tem passado. Muitas delas provocadas pela maximização de ganhos de quem tanto já tem. Essa é a tendência dos novos tempos.

Lembra dos Jetsons e Futurama?


Episódio de Futurama. Imagem: Divulgação



Então. Nossas gerações. A minha. A sua. As de nossos pais e avós. Todas elas foram acostumadas a pensar no futuro priorizando o viés da tecnologia. “Será que carros vão voar no futuro?”. Duvido muito, por vários motivos.


Em primeiro, que a nova discussão do século em muitos países, felizmente, é a conscientização acerca do uso do transporte público coletivo. Nem tudo está perdido. Helsinque, a capital da Finlândia, pode não ter carros particulares a partir de 2025, por exemplo. No lugar de carros particulares, um novo modelo irá integrar ônibus, metrô, trem, bicicleta e táxi.


Boas notícias à parte, vamos falar do que está tão próximo da gente. Foi um erro pensarmos em futuro priorizando o viés dos avanços tecnológicos e científicos. Talvez tenha sido um otimismo tonto acreditar que depois de tanta luta, os direitos trabalhistas seriam ampliados ou na pior das hipóteses, mantidos.


Vão faltar carros voadores no futuro. Como podem também faltar empregos. Teletransporte? Não surgirá antes dos adventos de mais e mais aplicativos que terceirizarão funções até então executadas por pessoas que têm garantias trabalhistas. 


Justamente por terem garantias, essas pessoas que podem ser afetadas cobrarão mais do que “colaboradores de aplicativos”. Cobrarão? Isso já está acontecendo e tudo parece normal!


Se você tivesse visto a ideia do Uber em um desenho animado futurista, não ficaria assustado? Como pode, pessoas sem nenhum vínculo com empresa ou instituição cobrar para levar passageiros em seu próprio carro e pagar percentual do serviço para um aplicativo estrangeiro?


Os Jetsons / Imagem: Divulgação



Você não se assustaria, há 15 anos, se soubesse que sua locadora deixaria de existir porque uma provedora passaria a te fornecer um acervo de mais de 10 prateleiras de filmes, séries e shows? 


Cadê a magia de chegar na locadora e conversar com a moça que conhece os clássicos e as mais novas produções que concorreram ao Oscar? Para em seguida, na própria locadora, comprar uma revista SET (que não existe mais), uns chocolates e preparar o pacote de três filmes para assistir no fim de semana?


Não se trata de nostalgia. Novas tecnologias mudam drasticamente estilos de vida e acabam com a fonte de renda de muita gente. 


“Sob a aurora, eu, meus pensamentos e esse cheirinho de orvalho começamos bem o dia. Começamos, pois não me separo das minhas ideias. Tampouco desse cheirinho de orvalho. Será um lindo dia, como todos os outros!”


Se você anda romântico, não continue esse texto! Pare agora mesmo! Aviso dado. Bom, se você acha que a tecnologia tem facilitado sua vida, me diga o que você prefere:



  • Gastar menos para voltar de um bar de madrugada, assistir o triplo de filmes que assistia antes por apenas R$ 20 e estar desempregado.



  • Lutar para que alvará de taxistas não seja abusivo, exigir serviços melhores, ter mais desculpas para sair de casa, além de estar trabalhando com carteira assinada, como quase todas as pessoas ao seu redor?

Foto: Divulgação



Não se iluda: os baixos preços convidativos se dão por fruto da degradação das relações de trabalho e extinção de alguns serviços. Se ficou ruim para quem trabalha ou é dono da locadora, ficará ruim para você.


Isso porque quem mais ganha, afinal, não é você. É quem paga menos e por isso pode cobrar menos para ganhar mais. Quando o intuito da tecnologia é maximizar lucros ao invés de melhorar a qualidade de vida não apenas dos que detêm domínio sobre a tecnologia, deveria ser a hora de parar com esses avanços.


Mas esses avanços tecnológicos não vão parar. Não vão parar porque há quem esteja enfeitiçado com a imagem da aurora e o cheirinho do orvalho, que parecem formar o cenário dos novos tempos. Mas não é. Não há nada romântico com tudo isso que está acontecendo.


Como o Brasil não é a Finlândia...



Se Helsinque planeja não ter carros particulares a partir de 2025, as cidades brasileiras estão mais próximas de criar seus próprios veículos voadores. Desses que quase decolam, tamanha velocidade imposta pelos seus condutores.


Um dos possíveis candidatos na próxima eleição presidencial, o prefeito de São Paulo, João Doria, revogou medida de limite de velocidade nas marginais tomada pelo seu antecessor, Fernando Haddad.


O resultado disso foi, nos primeiros meses de mandato, um aumento de 51% em acidentes na comparação com o mesmo período do ano anterior, segundo informações da Polícia Militar de São Paulo. Não adianta falar de advento tecnológico sem falar de política. De avanço em bem-estar sem reconhecermos que o “novo” vem vestido de velho. Que o “Jetson”, na verdade, não chega a ser um “Flinstone”. Estaria mais para um personagem de “A Família Dinossauro”.


"Não é a mamãe" / Foto: Divulgação



Que a aurora, na verdade, só pode ser vista através de uma TV de LCD. Que o cheiro de orvalho, na verdade, não é cheiro de orvalho. Seu olfato está seriamente comprometido e te ilude.


Quanto mais a tecnologia servir de instrumento para iludir os que dela serão substituídos, mais ela cresce com esse propósito. Quem deveria coordenar a tecnologia somos nós, que não a detemos. Brasileiros e finlandeses. Ciclistas de São Paulo e usuários de ônibus de Helsinque. Se não deu para entrar na era dos Jetsons, ainda nos resta tempo de não virar o episódio de Simpsons do vídeo abaixo.


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