quarta-feira, 1 de março de 2017

O que Recife e Olinda me ensinaram

Marco Zero lotado na sexta-feira (24 de fevereiro de 2017), abertura do carnaval de Recife
Ir ao carnaval, ou melhor, ir aos carnavais de Recife e Olinda eram um sonho para mim. Um só sonho, no singular. Tão singular como as duas cidades pernambucanas. Mas afinal, as festas momescas em Pernambuco são melhores do que em Salvador? Vou te contar uma coisa.

O sentimento de pertencimento é muito importante. Sentir-se local, filho de determinada cidade, região ou continente. Me lembro que no Chile, país em que morei por dois anos, era comum ouvir músicas de diversos países hispanohablantes, e chamava a atenção dos chilenos que eu, nascido em um país do mesmo continente, não conhecesse até as músicas mais famosas da Argentina, Colômbia, México, Cuba e Porto Rico. A língua é uma barreira invisível. Diferente do muro pretendido por Trump para separar Estados Unidos e México, há uma parede invisível que impede os brasileiros de conhecerem Celia Cruz, Manuel Mijares e Carlos Vives. No Chile, eu aprendi a ser latino-americano, e não apenas brasileiro. Em Recife e Olinda, eu aprendi a ser nordestino, e não apenas baiano. 

Conheci Almir Rouche e Marrom Brasileiro, lendas pernambucanas pouco conhecidas fora do estado. Era impressionante a conexão entre artista e público no Marco Zero, como todos sabiam cantar, com emoção, músicas antigas que eu nunca havia escutado. Após repetidas execuções dos clássicos, eu já fazia coro ao refrão "Ai que calor, ô, ô, ai que calor, ô, ô, ai que calor, ô, ô, ô, ô, ô... ô, ô", como um pernambucano a mais na multidão.



Sou nordestino, logo, essa música também é minha. E a guitarra de Armandinho, além de baiana, é pernambucana. Porque somos todos da mesma região, diversificada, mas com muito mais semelhanças entre os estados do que se costuma pensar. E é por isso que não existe uma resposta à pergunta "qual o melhor carnaval: Recife, Olinda ou Salvador?". Ambos são maravilhosos, únicos, e ao mesmo tempo fazem parte do mesmo todo. É uma festa só, de uma região que poderia fazer mais trocas entre si.

"Eu Acho é Pouco", um dos blocos mais famosos de Olinda, no sábado (25)


Não é verdade que "música baiana e referências à Bahia não entram no carnaval de Pernambuco". "Cometa Mambembe", consagrada nas vozes do cearense Alcymar Monteiro e da paraibana Elba Ramalho e tão tocada no Galo da Madrugada, foi composta por um baiano, Carlos Pitta. Já "Banho de Cheiro", homenagem à Bahia também emplacada por Elba Ramalho, foi escrita por Carlos Fernando, que nasceu em Caruaru, morou a maior parte de sua vida em Recife, Olinda e Rio de Janeiro e é considerado um dos maiores responsáveis por unir frevo e MPB, ajudando a expandir referências ao Senhor do Bonfim, Filhos de Gandhy e Boca do Rio.






Nada supera o que presenciei no show de Otto na segunda-feira (27), no Pátio São Pedro, no Recife Antigo. O local parece a Praça Tereza Batista, no Pelourinho, em Salvador, e a emoção do público contagiava. Em todos os momentos do show o artista, nascido no interior de Pernambuco, falava da emoção de estar na cidade que o acolheu e da qual se sente pertencente, de se sentir o espelho do público e de sentir que o público é o seu espelho, para em seguida dizer "mas vamos falar de Salvador agora" e emendar "Janaína", música que fala da festa de Iemanjá, que acontece no dia dois de fevereiro, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador.




Não é a única música de Otto que cita Salvador, mas me senti representado pela citação à minha cidade antes de ele começar a cantar uma música que fala da minha cidade em pleno carnaval de Recife, mesmo em meio a um público que parecia ser predominantemente local. E fico feliz que vários recifenses se sintam representados pela canção como eu me senti representado pelas músicas pernambucanas que ouvi.

Se no Chile eu conheci muitas músicas que me fizeram me sentir mais latino-americano, independentemente das diferenças que existem entre os países do continente, em Recife constatei que nenhuma diferença deve ser maior do que o sentimento de união em torno de uma só causa, o carnaval. Uma festa só, em várias cidades. Assim deveria ser o mundo: multicultural e único. Como as músicas de Otto.

Em Bora Tao
Em Bangladesh Goa
Na China Mao
Free Tibet para mim é pessoal
Lavanda ofereço orixá
Luanda, Havana e Salvador
Na lama do Recife sou xangô
Umbanda, caranguejo, salta a dor
Que idade banha ele
Banho de mar
Que idade banha ele
Iemanjá

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