Ensaio do Ilê Aiyê - Foto: Lucas Franco |
Uma das lembranças mais fortes do meu início de adolescência aconteceu em uma aula de história na 6ª série. Os resquícios de fantasia de infância davam lugar, gradativamente, a doses cavalares de mundo real. Quando meu professor, Sérgio Guerra, pediu para que levantassem a mão os alunos que já haviam visitado a Disney, algo em torno de um terço da classe (inclusive eu) ergueu os braços. Pensativo, Guerra ajeitou os óculos com o dedo indicador, franziu a testa e disparou "agora quero saber quem já foi ao Curuzu..."
Silêncio. Em seguida, burburinhos. Pior do que confirmar qualquer teoria do docente era nem saber onde ficava o Curuzu. Decerto o estádio do Paysandu não seria o alvo da sua pesquisa, ou melhor, experiência marxista. Fato que ninguém se manifestou. Com um misto entre sorriso triunfante e olhar melancólico de quem não pôde se surpreender positivamente, Guerra continuou. "Muitos de vocês foram a Disney, todos vocês ao menos já ouviram falar do parque de Mickey Mouse, mas nenhum de vocês sequer ouviu falar no Curuzu. Vocês são mais americanos do que baianos".
Cada dia que eu busco desvendar minha própria cidade eu me lembro desse episódio. O colégio em que estudei, o Cândido Portinari, é um mundo à parte. Um mundo sem azeite de dendê e sem ritmos africanos. Um mundo que se estendia da sede da instituição, no Costa Azul, até o Aeroclube, baladas para menores de idade na Fashion Club, festas de quinze anos, praia de Piatã, jogos do Jocopa (Jogo dos Colégios Particulares) e mais meia dúzia de lugares clichês. Um mundo que foi meu até os 17 anos. Um mundo que eu apreciei enquanto por lá vivi. Um mundo sem São Lázaro, Rio Vermelho, Pelourinho e Cidade Baixa. Um mundo que não desejo ver meus filhos vivendo em função. Salvador é muito maior.
Cada um pode escolher o tipo de vida que quer levar. Os shopping centers e seus seguranças particulares dão lugar às praças públicas por desconfiança com a segurança pública. Mas as distâncias entre bairros nobres e subúrbio diminuem cada vez mais. E é da cabeça de quem se preocupa em proteger as fronteiras que surgem defesas à pena de morte, grupos de extermínio e criminalização dos rolezinhos.
Para compreender e amar algo, é preciso conhecer. Por um mundo com menos danone e mais dendê.
*Curuzu é onde fica localizada a sede do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro da cidade e símbolo da resistência negra.
*Curuzu é onde fica localizada a sede do Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro da cidade e símbolo da resistência negra.
4 comentários:
Nunca fui a Disney. E nem ao curuzu.
Cresci na mesma realidade que você, cercada pelos mesmos muros, que talvez fossem ainda maiores pela preocupações relativas ao gênero.
De qualquer forma, não sei se pra você foi assim tanbém, mas acho que eu pensei no jornalismo como uma grande porta para mil mundos com suas infinitas possibilidades de histórias e vivências. E mesmo não tendo ficado no jornalismo, ele me abriu mesmo essas portas e a psicologia segue abrindo. Na verdade, acho que a universidade desde seu início as abre - porque hoje seu acesso é mais democrático, variando mesmo nosso repertório de vivências com la colegas
, que desaa vez não estão cercados pelos mesmos muros e com isso nos abrem portas. Tive a chance de estagiar na liberdade, na comunidade do solar do unhão, de me aproximar um pouco mais da música afro, viver a farofa do porto e levar minhas orações ao bonfim - mas ainda falta tanto! Falta saber me locomover na cidade
falta perder o medo de algumas coisas e lugares, falta
Ir ao santo antonio ver a vista, falta ir ao curuzu, a um terreiro... Mas acredito que eu chegue lá, porque o dendê está mesmo no blood. Acho que a reflexão do seu professor a qual você deu sequência no seu texto é bastante pertinente! Uma pena que isso aqui não esteja fervilhando nessa discussao, trocando os porques de cada um nao ir ou de gostar de ir...
Enfim, eu fiquei com a reflexão.
Beijo!
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