terça-feira, 18 de junho de 2013

Inconformados de verdade: uma seleção de heróis

A seleção não representa o governo, a Rede Globo ou a CBF. Ela é composta por pessoas que, apesar de não se pronunciarem sobre os problemas nacionais, não acordaram ontem. Eles nos representam | Ricardo Nogueira/Folhapress
Todas as manifestações em prol de melhorias para o país são admiráveis, independentemente de quaisquer transtornos eventuais, como atos de vandalismo. Sair da inércia sempre será melhor do que calcular com perspicácia eventuais danos de uma operação complexa como um protesto com milhares de pessoas. Mas ao contrário do que alguns militantes defendem, o gigante não acordou, ou ninguém se lembra de Zumbi dos Palmares, Balaiada, Sabinada, Conjuração Baiana, Contestado, Canudos, Cabanagem... O gigante sempre lutou. O povo brasileiro tem uma história de lutas e conseguiu avanços importantes. Quantos jovens não se tornaram os primeiros da família a conseguirem entrar na faculdade? Tataranetos de escravos que ergueram com orgulho o canudo de formando graças a alguns avanços sociais, como os créditos educativos e cota nas universidades públicas, mas sobretudo graças a garra. Nunca faltou força de vontade para os brasileiros.

A consciência política, sim, pode ser o próximo passo para uma nova fase, embora em algumas andanças minhas pelo mundo conheci estrangeiros de “países de primeiro mundo” que não sabiam bulhufas sobre política local. As passeatas injetam doses extras de auto-estima, mas trazem como efeitos colaterais a falta de autocrítica. Por que quem nunca se mobilizou antes para lutar por mudanças hoje se sente no direito de julgar quem ainda não aderiu à causa? Isso me lembra os episódios de repúdio ao torcedor do Bahia, Binha, que nada mais é que um reflexo do que foi a massa tricolor durante toda sua vida, como escrevi em uma postagem há um mês.

Sobrou até para o futebol. Cartazes como “Japão, eu troco meu futebol pela sua educação” e gritos como “Brasil vamo acordar, o professor vale mais que o Neymar” jogam a responsabilidade de um segmento omisso na sociedade em um esporte de essência popular. A classe média tem tido presença maciça no movimento, o que é perceptível nas redes sociais. Ótimo. Mas os 23 jogadores que representam nosso país na Copa das Confederações lutaram mais contra a corrente do que a grande maioria dos manifestantes que descobriram ontem como mostrar indignação, e eu me incluo aí. A Seleção Brasileira não representa o governo, a Rede Globo ou a CBF. Ela é muito mais que isso. Ela é composta por pessoas que, apesar de não se pronunciarem sobre os problemas nacionais, não acordaram ontem. Histórias de meninos pobres que acordavam cedo, desde muito cedo, para ralar nos treinos em busca do sonho de ser jogador e ajudar a família e a comunidade, sem falar na superação de Thiago Silva, que superou uma tuberculose na Rússia, são as provas que eles nos representam. O que há de ruim no futebol não é causado pelos jogadores.

A história tradicional da música brasileira omite o brega. A MPB, gênero mais influente na classe média, que lutou por democracia nos tempos de ditadura, preenche as lacunas dos tempos de chumbo. O livro “Eu Não Sou Cachorro Não”, de Paulo Cesar de Araújo, resgata um pouco da história dos artistas que, ao contrário dos astros da MPB, vieram de baixo e não eram tão instruídos politicamente, mas incomodaram os censores da mesma forma por tratarem de temas como a opressão de uma classe dominante sobre o povo, coisa que não pôde ser sentida na pele por Chico Buarque por exemplo. Tampouco os compositores “politizados” levavam seu som a lugares remotos, como Ravel descreve em uma passagem. “Nós sempre estivemos nos apresentando em localidades onde a maioria dos artistas não queria ir. Nenhum artista da MPB ia se apresentar em Capual, Vilhena, Ji-paraná, Pimenta Bueno, Rolim de Moura, Presidente Médici; é incrível, mas nós vimos nascer esses municípios todos. Inúmeras vezes a gente cantou para aqueles trabalhadores que estavam construindo a Transamazônica. E era um risco muito grande para um artista fazer um show ali. Mas nós fazíamos os nossos shows assim, cantando embaixo de galpões, em fazendas, levando mordidas de mosquito, ficando atolado na estrada, vendo a miséria do povo, aquele povo simples que adorava música”.

E quantos dos manifestantes desprezam símbolos populares como os jogadores de futebol e os cantores de brega? Estes, sem dúvida, nunca dormiram. Com consciência política ou não, fizeram muito mais que a maioria dos que têm feito protesto e somente decidiram agir na semana passada. Pior para mim, que não fui às ruas na segunda-feira. Será que eu ainda não acordei?

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