Zumbi dos Palmares - Imagem: Divulgação |
Eu não poderia passar o 20 de novembro, dia da consciência negra, sem lembrar os meus professores de história dos tempos de colégio, especialmente Sérgio Guerra (sexta-série), o meu favorito, que despertou minha curiosidade sobre a cultura afro-brasileira e principalmente, sobre o Curuzu, como escrevi em uma postagem no início do ano.
Ser professor no Brasil não é fácil. Não é de hoje que a educação pública está sucateada. No entanto, sugiro que também não são pequenas as dificuldades de lecionar história em um colégio privado. Narrar a trajetória do ser humano a partir do advento da escrita até os dias atuais é duro quando boa parte da sala de aula cultiva mitos enraizados pela família, que geralmente é de classe média, e pela televisão, tão pouco democrática. A educação de casa custa a envergar para a esquerda, não é a toa que nesse ambiente as cotas são mais questionadas do que o cruel sistema de vestibular. Afinal, quem estuda em colégios como Portinari, Anchieta, Sartre COC e Oficina larga na frente dos cotistas antes de preencher os primeiros gabaritos. Costumo dizer que a educação privada continuará bem até o dia em que os pais dos alunos influenciarem a escolha dos professores de história. Se a educação pública precisa urgentemente de investimentos, a particular “se salva” porque seus professores de esquerda mostram aos alunos que o mundo não começou com a gestação de suas mães. Meus pais, felizmente, facilitaram meu caminho simbólico rumo ao Curuzu, por isso 20 de novembro também é dia de agradecer a eles.
Obrigado Garrido (terceiro ano do ensino médio), por revelar que Duque de Caxias matou inúmeros paraguaios apenas por maldade. O patriotismo não deve se sobrepor à decência. Chico Pedro, meu único professor negro de história (quinta série), você tem total mérito por me fazer gostar da matéria que leciona com tanto amor. Fábio Machado (sétima séria), até hoje me lembro da trajetória das primeiras civilizações do Oriente Médio e Europa porque suas aulas eram mais dinâmicas do que qualquer documentário ou livro escolar. Freitas (oitava série e primeiro ano do ensino médio), lamento que não estejas em nosso plano material, mas aí do alto saiba o quão fundamental suas aulas foram para que eu fizesse um paralelo entre episódios do passado e o comportamento social moderno. João Gualberto (segundo ano do ensino médio), suas críticas à alguns setores da imprensa me tornaram um leitor mais crítico. Parabéns pelo bom exemplo Zé Carlos (cursinho), pois você tinha motivos para ser amargurado, mas manteve seu sorriso, cordialidade e capacidade de descrição, apesar das torturas que sofreu durante a ditadura militar. Todos esses professores tiveram enorme importância na formação de meu caráter por seus inúmeros ensinamentos. Mas é principalmente Sérgio Guerra que me faz lembrar o 20 de novembro. Ele provou o quão pouco baianos são os estudantes de colégio particular (leia minha postagem “Where is the 'dendê' in my blood?”). Como bom docente, porém, mostrou os caminhos para a “baianização”. Nem tudo estava perdido.
Dia desses me peguei pensando sobre de quem é a responsabilidade sobre o alarmante índice de crimes cometidos pela polícia, sejam mortes em tiroteio nas favelas ou abuso de autoridade. Os números são altos e há uma evidente diferença no tratamento dado a um jovem branco e um jovem negro, o que inclusive já foi admitido (PM de Campinas determina abordagem de suspeitos de ‘cor parda e negra’). Não reconhecer essa triste realidade, em que receptividade, oportunidades e traços étnicos estão inter-relacionados, a meu ver, já torna uma pessoa cúmplice do racismo, seja por maldade, omissão ou ingenuidade. Os mesmos pais que não ensinam a importância de Zumbi dos Palmares para suas crianças só se atentam para a violência urbana quando são assaltados na porta do colégio (Após assalto em escola na Pituba, pais protestam para pedir segurança). Na mesma cidade, todavia, a violência da polícia para “manter a ordem” vitimiza gente que só é lembrada quando para o trânsito para queimar pneu e chamar atenção sobre a violência. Se a indignação pela violência fosse compartilhada por todos, independentemente do bairro, não teríamos no mínimo uma sociedade mais solidária? Ou solidariedade se restringe aos vizinhos? Não foi apenas a maldade, mas também a falta de solidariedade que fez o Brasil amargar mais de 300 anos de escravidão. Falta de solidariedade que permanece nos dias atuais.
O racismo brasileiro é “sutil”. Disfarça-se de “humor politicamente incorreto” e “meritocracia”. Quase justificado pelo conceito de predestinação de João Calvino. Uma prova de que é fácil ser conservador quando “a vontade de Deus” te favorece. O racismo também está em desqualificar o cabelo crespo, o candomblé e a cultura afro-brasileira em geral. Não me surpreende que venha de Marcos Feliciano a manutenção da idéia de que “a África é um continente amaldiçoado”. O racismo consegue juntar descriminação racial e intolerância religiosa no mesmo discurso, e choca menos a sociedade do que um beijo gay na novela. Em ambientes “conservadores”, questionar pode ser “enxergar racismo em tudo”. É por isso que eu digo e repito: obrigado professores de história. Vocês me deram as ferramentas necessárias para melhorar o mundo. Depende de mim colocar em prática todos os dias, seja em Salvador ou aqui na Patagônia, onde vivo há três meses.
* Por tanto gostar de história e entender a importância das lembranças de datas, estátuas e nomes de lugares (continentes, países, estados, cidades, bairros e ruas), eu imaginei como seria bom se...
- o 20 de novembro, data de morte de Zumbi dos Palmares, fosse um feriado de 4 dias e as famílias pudessem viajar para celebrarem juntas, como no natal, com tardes de caruru e noites de maracatu, capoeira e tudo que lembre a cultura afro-brasileira.
- as estátuas de Duque de Caxias fossem arrancadas como as de Saddam Hussein no Iraque após invasão estado-unidense ou as de Franco na Espanha após a ditadura no país ibérico. Não estou comparando os personagens, mas as atrocidades cometidas pela guerra, que não deveriam ser orgulho para ninguém.
- o continente em que vivemos deixasse de se chamar América, e a Colômbia também ganhasse outro nome. Afinal, Américo Vespúcio e Cristóvão Colombo não merecem mais essa homenagem do que nossos libertadores.